“A escrita só começa, porque algo me afetou, me atingiu, me atravessou como uma flecha” — entrevista com Flávia Péret
A 89ª de uma série de entrevistas com as/os poetas da editora Urutau
por Silvia Penas Estévez & nósOnça
O que é poesia para você?
Essa pergunta é muito difícil. Nada mais difícil de capturar e definir do que os sentidos da poesia, principalmente a poesia contemporânea onde os elementos da ficção, da prosa e da fala infiltram-se com intensidade no poema, mudando as coisas de lugar o tempo todo. A pergunta que me faço com bastante freqüência é: o que é a escrita?
Mas, tentando responder. Gosto muito de uma definição que nunca consigo me lembrar se é do poeta Joan Brossa ou do poeta Mário Quintana: a poesia é quando duas palavras comuns se encontram de forma incomum. Gosto dessa definição. Mas ela não é completa. Para mim, a poesia não é apenas um malabarismo da sintaxe, embora saber juntar as palavras de modo que possamos inventar com elas outras coisas, imagens e mundos, seja o trabalho da poesia. Mas tem algo que escapa, que não conseguimos explicar quando lemos ou escrevemos um poema e tentamos encaixá-lo na caixinha “Isso é poesia”. Por isso é difícil dizer o que a poesia é. Como Drummond, acredito que a poesia, a escrita é uma procura, algo porvir, mas também um passeio, um devaneio, um sonho, um pensamento, uma ideia, uma intuição, um sentimento, um modo de vida, uma medicina e muitas outras coisas que não consigo me lembrar agora.
Quando escreve, pensa em interlocutores? Sua escrita lhe afeta?
Não penso não. Sou imensamente grata por ter leitoras e fico honrada, feliz quando alguém me escreve falando que leu meu livro e compartilhando comigo o que pensaram e sentiram…
Mas quando estou escrevendo, não penso em nenhum leitor (imaginário, real, ideal). Só penso no poema ou no texto que quero escrever, o que não significa que eu não tenha múltiplos interlocutores, mas meus interlocutores são os textos com que dialogo, leio, converso, minhas referências, meus subtextos. Não são apenas textos — são imagens também e letras de música (que são textos) e falas. Estou sempre escrevendo junto com esses interlocutores. Penso que não existe escrita sem afetação. Pensando na pergunta do Espinosa O que pode um corpo? Um corpo pode afetar e ser afetado? O que pode a poesia? A poesia pode afetar e ser afetada. Sou afetada antes, durante e depois do processo de escrita. A escrita só começa, porque algo me afetou, me atingiu, me atravessou como uma flecha: um barulho, uma imagem, uma fala, um gesto, uma lembrança, um desejo, uma angústia, um sim, um não, um se.
Quais são os/as poetas da atualidade/vivos/vivas que mais lhe tocam nesse momento?
Eu leio muito, leio muita prosa (romance/contos) então não consigo falar só de poetas, mas de escritoras, cantoras, artistas que me influenciam e me tocam.Meu trabalho tem uma força/energia/inspiração muito forte das artistas visuais que trabalham com palavra e imagem. É uma influência que incide na forma, no como escrever, na quantiade de importância que as frases têm para mim. E sempre tento dizer que isso não é obvio. A frase não precisa ser bonita. Às vezes, é o contrário disso. Mas ela tem que ter uma força. Algumas artistas, principalmente Jenny Holzer, Yoko Ono, Laurie Anderson, Grada Kilomba criam e trabalham muito com frases. A Sophie Calle também. É como se elas colocassem a frase num outdoor, mas a moldura que elas escolhem (que pode ser o quadro, a rua, a tela) é o contrário da comunicação sem ruídos da publicidade. Tem que ler/ver/ouvir essas frases, senti-las em sua multiplicidade de aparições, escalas, formatos, suportes, plataformas.
No livro Histórias Reais, a Sophie Calle consegue resolver uma equação que não é simples: como criar uma narrativa para uma imagem que não seja meramente ilustrativa e na condensação que ela faz da linguagem: pouco, curto, frases secas, o texto alcança essa força. Então, minhas referências estão também nesses lugares…
Uma poeta que admiro muito é a Marília Garcia. Esse movimento que a Marília trouxe para a poesia brasileira de escrever o processo, capturar (ou criar um artifício que passe a sensação da captura) o pensamento enquanto ele acontece é genial. Eu sou professora de escrita e sempre que lemos o poema A poesia é uma forma de resistores? a cabeça de algumas pessoas, assim como aconteceu comigo, faz um clic. Eu costumo falar com as pessoas que este poema é de uma generosidade sem fim, assim como o conto Ponto de Vista, da escritora Lucia Berlin: porque são textos que nos mostram como se escreve, enquanto se escreve, eles abrem esse processo que é sempre tão misterioso e cheio de véus. Eles colocam juntos na cena que o poema constrói essas duas figuras: poeta e leitor. É muito performático. Tem uma artista visual brasileira, do sul, ela se chama Vera Chaves Barcelos. E ela tem um livro de artista (muito simples e muito raro) chamado Momento Vital. É uma encadernação A4, e a medida que vamos virando as páginas e lendo o texto que está escrito na página lemos exatamente o movimento que nós, leitores, estamos fazendo: eu estou aqui digitando. E a poesia da Marília Garcia tem isso. Ela está lá escrevendo e dividindo com os leitores o momento da escrita é como se a performance, o teatro, a voz, furassem o texto, para usar um conceito que a própria Marília utiliza. A leitura é para mim um momento vital.
Tem Adélia Prado, que está viva (salve!) que é uma referência poética, afetiva, mas também espiritual e anímica na minha poesia. Tem algo na poesia dela (e também em Drummond) que é essa tentativa de alcançar o ser das coisas, seu medula. Mesmo quando escrevo sobre o banal, quando escondo o objeto — quando este objeto (metafísfico) está ausente — é ele que eu busco.
Ando tão Drummondiana nessa quarentena, quase todos os dias leio algum poema dele: Congresso internacional do Medo, Nosso tempo, Indicações e também releio Adelia.
O que você opina sobre as redes sociais como difusoras de arte? Colaboram de certa forma para a existência da poesia?
A poesia é um movimento gigante, infelizmente, eu só acompanho um pedacinho desse movimento, apesar dos meus frequentes movimentos para sair da minha bolha, sou professora de escrita e viajo muito a trabalho dando oficinas, participando de eventos literários, graças a isso consigo conhecer um pouco mais do que é produzido fora do que meu limitado campo de visão. Quando participo de festivais literários é que vejo como existe gente no Brasil escrevendo poesia de todas as formas e fazendo essa produção circular. Aqui da minha bolha, observo e participo de muita articulação, troca, confluências, ativismo, muito desejo de fazer a poesia ter espaço e isso tudo passa pelas redes sociais e pelas trocas virtuais. Antes de conhecer pessoalmente as poetas por trás da iniciativa MQE — Mulheres que Escrevem — eu as conheci por facebook, email, áudio de zap. Hoje, Estela Rosa e Tais Bravo são amigas queridas, influências no meu modo de pensar a poesia, sua escrita e sua circulação.
Mas, sigo preferindo, ainda, os encontros presenciais, as trocas que se dão fisicamente, como por exemplo a experiência da poesia falada hoje no Brasil. Aquilo solicita nosso corpo, nossa energia, nossa escuta, nossa presença e saímos dessa exeperiência afetados…é radical.
Nos últimos anos tivemos uma série de acontecimentos no Brasil (do fim da era Lula à ascensão da extrema direita) e também uma maior visibilidade aos movimentos de lutas sociais (feminista, LGBTQIA+, indígena, quilombola, anti-racistas…) — isso reverbera na sua criação literária?
Totalmente, nem sempre como um território de fala, mas como espaço de escuta, de compartilhamento e de visibilidade de muitas dessas questões. Sou feminista e pesquiso questões de gênero e diversidade sexual desde o mestrado, primeiramente estudando a representação que foi feita das travestis na literatura brasileira. Agora, 10 anos depois, no doutorado, pesquiso as relações entre política, escrita e gênero (mulherxs). Penso meu trabalho artístico de forma mais ampliada, já que trabalho com outras linguagens como a intervenção urbana, o som, o vídeo, a imagem. Ano passado, participei de uma residência artística aqui em BH e minha pesquisa (textos, imagens, processos de troca e encontro) girava em torno das histórias das mulheres, como ouvir, coletar, conhecer, dar visibilidade para as histórias de mulheres de diferentes contextos sociais,econômicos e culturais. Meu próximo livro toca de forma bastante insistente no tema da memória da ditadura militar, nessa ferida aberta, cheia de pus que carregamos até hoje. Ano passado também fiz um trabalho (texto e imagem/vídeo) sobre o tema da ditadura. Já o Mulher-bomba é um livro que fala do meu microcosmo: minha casa, minhas relações afetivas (casamento, filhos). Os Patos (lançado em 2018) fala das relações conflituosas com o corpo, as relações entre vergonha e escrita.
Penso muito nisso: vergonha, segredo, escrita (exposição). Muitas coisas que nós mulheres vivenciamos e fazemos são consideradas segredos. O segredo como algo que precisa ser ocultado, escondido: a perda da virgindade, menstruação, aborto, depressão pós-parto, relações fora-da-caixinha, exposição do corpo, modificações no corpo. E vamos carregando uma mochila muito pesada. Todos os segredos das mulheres se transformam em tabu. Até amamentar uma criança em local público é um tabu na nossa sociedade. O aborto espontâneo é um tabu. Eu vejo meu feminismo engajado nessa esfera, escrever sobre esses segredos que seguimos carregando…
Só a primeira vista, por uma série de injustiças, preconceitos e valorações que foram feitas, ao longo dos tempos, com a poesia e a literatura escrita por mulheres, esses temas não merecem ainda a importância que têm. E mostrar isso: o doméstico e o afetivo como político é uma tática de fazer política com o corpo e com a palavra. Não separo meu ativismo da minha escrita, nem seu eu quisesse. não consigo, como não separo minha escrita da minha vida. Minha existência está atravessada por essas forças, essas energias, esses impulsos e zonas de interesse.
O seu poema nasce de súpeto, como algo que golpeia e sai de uma maneira explosiva e rápida ou é um processo mais pausado e longo?
Depende. Às vezes sai de supetão. Um primeiro verso e vou atrás dele. Às vezes demora. Não tem um processo, são várias formas de escrever. Em cada poema eu invento um processo, outro dia, na dúvida de como terminar um poema, fiz até aquela brincadeira infantil do uni, duni, tê. Posso ficar meses tentando escrever um texto, inventando processos para escrever um texto. Nem sempre é fácil, mas é sempre gostoso, adoro viver com minhas histórias (enquanto estou tentando escrevê-las) com essas mulheres todas que são minhas personagens.
O seu livro, Mulher-bomba, como ele surgiu?
Comecei a escrever o Mulher-bomba no final de maio, início de junho de 2017, depois de chegar em casa do cinema. Tinha ido ver o filme Paterson, do Jim Jarmush. Tinha tanto tempo que não escrevia poesia e me deu muita vontade de escrever poesia. Paterson que é sobre um motorista de ônibus que é poeta. Eu cheguei em casa, peguei um caderninho novo (presente de aniversário) e escrevi na primeira página: meu nome, o ano, e “O Livro dos Poemas”, depois escrevi “Romance de Amor” e depois escrevi ainda, entre parênteses “(exercícios de leitura)”. Uma grande parte do Mulher-Bomba foi escrito nesse caderninho.
Mas essa certeza da data é uma exceção na minha vida. Isso só aconteceu mesmo com o Mulher-Bomba, porque é muito difícil precisar um momento certo. Quando um livro começa? Um livro é, antes de tudo, um conjunto de poemas que vamos escrevendo, reescrevendo, rejeitando e depois editamos exaustivamente, é a edição que dá corpo ao livro: unidade, organização. Na edição, eu penso o que entra e o que não entra, que história quero contar com esse livro e o Mulher-Bomba, especificamente é um livro bem narrativo, ele tem um início, meio e fim. Um fim possível, meio aberto, mas é um fim. Posso dizer que o enredo do livro é a história de amor de um casal: uma mulher e um homem, do namoro ao morar na mesma casa (casamento), atravessado pelo nascimento de um filho e depois de uma imensa crise, a separação. O livro é atravessado por várias referências, mas a principal delas é o livro Cenas de um Casamento Sueco, do Bergman. O Mulher-Bomba começa com um poema chamado “Terra Prometida” e termina com um poema chamado “Final Possível”, entre esses dois poemas, o leitor acompanha a construção e a dissolução de uma relação amorosa, na minha opinião uma das temáticas mais tristes do mundo, mas como não foi “minha opinião” que escreveu o livro, mas esse eu-narrativo-performativo que sou, o livro é cheio de outros sentimentos que não apenas a tristeza, é um livro que tem até momentos de humor e de leveza. Eu tenho uma grande amiga que fala uma coisa que eu adoro. “Você escreve um negócio meio dramático, meio triste, mas te vejo atrás da porta escondida chorando de rir dessa situação toda”. E é verdade. Eu sou um pouco assim.
Alguns leitores me falaram que acharam o livro muito triste, que choraram…enfim, eu aceito essa percepção, essa leitura (e isso é o mais legal de publicar livros) mas não sei, não vivi só tristeza enquanto escrevia, vivia muitas outras coisas! Mulher-bomba não é um retrato da minha separação. Minha separação foi outra coisa. Meu livro é uma versão, uma possibilidade que a escrita me dá de pensar (e inventar) sobre certas coisas que acontecem na vida de todo mundo.
Qual é o seu verso favorito do livro? Há alguma explicação?
No último poema do livro, um poema chamado Final Possível, gosto muito da última frase, ela condensa tudo que busco com a escrita: uma escrita muito simples, límpida, objetiva, mas que ressoa algo estranho e não dito que está dentro do poema, o poema é feito de muitas camadas não ditas, as entrelinhas e meus poemas escondem essas entrelinhas. às vezes entendo meus poemas como mini-contos, duas historias dentro de uma mesma história e esse poema é todo feito com “provérbios” ou ditos populares…esse foi um poema que veio de supetão.
o verso que é uma frase diz:
“e foi feliz um pouquinho.”
Como você conheceu a editora Urutau?
Minha amiga, querida, de muitos anos, Eliza Caetano, publicou o primeiro livro dela, O caderno das inviabilidades pela Urutau. Foi assim que conheci.
Alguma observação que queira acrescentar?
Nossa, já falei tanto né? Ta bom. :)
Flávia Péret
publicou também Imprensa Gay no Brasil, 10 Poemas de Amor e de Susto, A Outra Noite, Uma Mulher e Os Patos. Vive e trabalha em Belo Horizonte.