“A palavra poética é nossa luta a(r)mada contra a mediocridade, as injustiças, o tédio, a morte.” — entrevista com Ronaldo Cagiano
A 28ª de uma série de entrevistas com as/os poetas da editora Urutau.
A poesia é uma forma de ver o mundo?
Numa das passagens de “A jangada de pedra”, de Saramago, colho esta expressão de seu personagem, que harmoniza-se com o que penso da poesia nesse mundo e nesses tempos tão distópicos: “…o que seria de todos nós se não viesse a poesia ajudar-nos a compreender quão pouca claridade têm as coisas a que chamamos claras.” Penso na poesia como instância de insurgência, de inquietação, pela qual podemos nos indignar diante de tanto dissídio social, político e humano, diante de tão graves passivos que nos assolam. A palavra poética é nossa luta a(r)mada contra a mediocridade, as injustiças, o tédio, a morte. É nossa maneira de ser-ver-estar no mundo, sem dúvida.
Quando escreves, pensas em alguma leitora/leitor imaginária/o? Se vês afectado por aquilo que escreves?
A escrita é uma partilha solitária, no entanto não podemos nos divorciar de sua comunicação plena com o leitor. Deve ser o seu mergulho íntimo, deve ser o rastreio de seu olhar. O primeiro compromisso é com nossa solidão e nossa catarse, no entanto não pode ser um confronto egoísta com seu mundo, como se egonautas de um universo particular; lidamos com dilemas e angústias interiores e coletivas, porém, na outra dimensão, realiza-se o seu fluxo, instância a quem se direciona o poema: o leitor. A ele se dirige esse farol do verbo-resistência e a linguagem deve carregar a relação simbiótica entre o emissor e o receptor, é um sistema de vasos comunicantes, de alteridade estética (e também ética). O que nos afeta não pode ser o que nos afasta, de tal sorte que aquele que produz o lume poético é também perpassado pela responsabilidade de realizar a intercessão afetiva com o outro. Em “Kafka à beira-mar’, Haruki Murakami diz que “Se as palavras não logram criar uma espécie de túnel profético que lhes permita chegar até ao leitor, o conjunto deixa de funcionar como poesia.” Sigo essa direção.
Achas que há leitores de poesia ou só os poetas se lêem entre si?
Há leitores para o que é a boa literatura, seja ela poesia ou prosa. O que falta é uma política estratégica de estímulo à leitura, à disseminação de bibliotecas. O gosto pela leitura passa pelo acesso ao livro. E isso é um processo que conjuga esforços da família, da escola, da sociedade. Se há uma consciência de que livros libertam e que é mais salutar investir em bibliotecas do que em presídios, teremos condições de trabalhar a transformação desse país, que nunca foi um país de leitores em uma nação de gente que pensa criticamente. Como Borges, eu também penso que “um livro tem de ser uma forma de felicidade”. E nesse sentido, vale lembrar também Castro Alves: “Ó bendito o que semeia livros,/ livros à mancheia/ e manda o povo pensar:/ o livro caindo n’alma/ é germen que faz a palma/ é chuva que faz o mar!.”
Que opinas sobre as redes sociais como difusoras de arte, recitais etc.?
Desde muito tempo afastei-me das redes sociais. Não por renegá-las nem desqualificar seu potencial de comunicação e interatividade, mas porque, por outro lado, o excesso de exposição e o tempo despendido nos acessos diários, rouba-nos a possibilidade de um isolamento estratégico e de uma necessidade de solidão para ler e escreviver. Meu diálogo estabelece-se noutras plataformas, e o livro é esse espaço.
O teu poema nasce de súpeto, como algo que golpeia e sai de uma maneira explosiva e rápida ou é um processo mais pausado e longo?
O poema nasce do assombro e da inquietação, pode brotar a qualquer tempo, em qualquer lugar, de uma visão, de uma sensação, de um olhar ou flagrante; ou pode ser fruto de um processo de elaboração e pensamento, sem nexo de causalidade. De uma fagulha de indignação, nasce o insight para nossa guerrilha poética, esse eterno brigar nas trevas, porque escrever é correr riscos num mundo cada vez mais disruptivo, em que somos consumidos pelo imediatismo e deletados pelas re(l)ações virtuais. Ao escrever um poema, é preciso também conviver com ele, espreitar-lhe a maturação. e então, dar-se-lo à luz.
Este livro, Os rios de mim, como surgiu?
A obra nasceu um acúmulo de poemas escritos e publicados apenas em jornais e revistas entre os anos 80/90 e que estavam dispersos em publicações antigas, muitas já inexistentes. Esses poemas sobre rios e águas que percorri e me percorreram, que cobrem cerca de metade do livro, fazem parte de uma certa hidrografia sentimental. Esses textos estavam guardados em pastas e que achei oportuno reuni-los sob uma chancela metafórica, como diz o título. No entanto, o livro restaria pequeno somente com esses poemas, não pararia em pé; então, incluí poemas inéditos, mais recentes e outros poucos que saíram em antologias e culminou nessa caprichada edição da Urutau.
Qual é o teu verso favorito do livro? Poderias explicar o porque ele é o teu verso favorito?
Os rios de mim me levam
mas não limpam
a rugosa poeira dos meus anos.
Como conheceste a editora Urutau?
Já havia tido contato com a editora pela internet e depois com autores pela Urutau publicados. Visitando o site percebei o apuro gráfico e a proposta editorial que resultam num catálogo de elevado nível. Sem dúvida, senti-me seduzido pelo zelo artístico com que a equipe editorial trabalha os livros e interage com os autores durante o processo de preparação da obra.
Alguma observação que queiras acrescentar?
Um registro, que acho necessário: uma editora do padrão da Urutau, que não faz concessões ao mau gosto ou ao compadrio, apostando unicamente na prospecção de autores de qualidade, merece ter seus livros bem distribuídos, tanto no Brasil, quanto em Portugal-Espanha, suas frentes de atuação. A editora vem realizando um trabalho de difusão da poesia não apenas do mundo lusófono, mas também da América Latina, o que é louvável, sobretudo num mercado editoria cada vez mais hegemônico e monopolista, em que se tem de matar um leão por dia e tirar leite de pedra.
Ronaldo Cagiano
nascido em Cataguases, Minas Gerais, Ronaldo Cagiano formou-se em Direito e foi bancário da Caixa Econômica Federal. Viveu em Brasília e São Paulo, tendo se radicado em Lisboa. Escreve resenhas e artigos em diversos jornais e revistas. Estreou com o livro Palavra engajada (poesia, 1989) e, dentre as obras publicadas, destacamos Colheita amarga & outras angústias (poesia, 1990), Canção dentro da noite (poesia, 1998), Prismas — literatura e outros temas (coletânea de artigos e resenhas, 1999), Dezembro indigesto (contos, Prêmio Brasília de Produção Literária, 2001), Dicionário de pequenas solidões (contos, 2006), O sol nas feridas (poesia, finalista do Prêmio Portugal Telecom, 2013), Moenda de silêncios (novela juvenil, em coautoria com Whisner Fraga, 2012), Eles não moram mais aqui (contos, Prêmio Jabuti, 2016), publicado em Portugal pela Ed. Gato Bravo e Diolindas (romance, em parceria com Eltânia André, 2017). Organizou as coletâneas Antologia do conto brasiliense (2001), Poetas Mineiros em Brasília (2001) e Todas as gerações — O conto brasiliense contemporâneo (2006).