“A poesia é o quarto chope da linguagem” — entrevista com Nuno Virgílio Neto
107ª de uma série de entrevistas com as/os poetas da editora Urutau
por Silvia Penas Estévez & nósOnça
O que é poesia para você?
A poesia é o quarto chope da linguagem. Não é o terceiro, nem o quinto: é aquele quarto chope e as coisas de que só ele é capaz.
Quando escreve, pensa em interlocutores? Sua escrita lhe afeta?
Só escrevo um poema se sou tocado por ele. Se deixa de me afetar, ele fica pelo caminho. Escrever um poema é uma experiência racional, mas também emocional. Às vezes tão marcante que costumo recordar onde, como e por que motivo comecei a fazê-lo. Essa conversa interna envolve muita gente: pessoas que eu vejo na rua em abençoados instantes de desatenção, em sonhos, aquelas que ainda esperam Godot nos bancos de praça da minha cidade, as pessoas que escreveram antes de mim e aquelas que o fazem agora, especialmente nas paredes, assentos de ônibus e cédulas de dois reais. Sou desses que cozinham conversando com o rádio, vou do FM (meus vivos) ao AM (meus mortos).
Quais são os/as poetas da atualidade/vivos/vivas que mais lhe tocam nesse momento?
Adélia Prado e Armando Freitas Filho são imensos. Gosto muito de Angélica Freitas, Bruna Beber e Dimitri BR. E acho um privilégio ser brasileiro e estar vivo ao mesmo tempo que Ana Martins Marques.
O que você opina sobre as redes sociais como difusoras de arte? Colaboram de certa forma para a existência da poesia?
Com o jornalismo cultural cada vez mais minguado nas mídias tradicionais, as redes sociais tornaram-se um território importante para a divulgação da arte em geral. No caso específico da poesia, gosto muito do fato de elas tirarem o texto poético daquele altar de livro didático, trazendo-o para o cotidiano igualmente habitado por fotos, canções, vídeos e memes que atravessam nossas telas. Mas não sei se a poesia deveria ser planejada sob medida para essas plataformas, suas dinâmicas de reação, interação e impulsionamento. Espero que a poesia continue escapando dos algoritmos (os das redes sociais, do mercado, da academia, do idioma).
Nos últimos anos tivemos uma série de acontecimentos no Brasil (do fim da era Lula à ascensão da extrema direita) e também uma maior visibilidade aos movimentos de lutas sociais (feminista, LGBTQIA+, indígena, quilombola, anti-racistas…) — isso reverbera na sua criação literária?
Existe uma força reacionária no mundo contemporâneo tentando impedir a humanidade de avançar contra injustiças, preconceitos e privilégios históricos que precisam ser vencidos. Meus posicionamentos como indivíduo diante disso certamente acabam interferindo na minha criação, mas não me pauto por eles ou por quaisquer outros temas quando escrevo um poema, porque nunca sei exatamente sobre o que estou falando quando coloco a primeira palavra de um poema no papel ou no rascunho do Gmail. Mas, acima de tudo, celebro o fato de as muitas e diferentes vozes desses movimentos que você citou estarem abrindo (ou quebrando) portas e janelas que sempre se fecharam a elas, inclusive na poesia.
O seu poema nasce de súpeto, como algo que golpeia e sai de uma maneira explosiva e rápida ou é um processo mais pausado e longo?
Como expliquei, nunca planejei um poema. Há muitos que eu gostaria de ter feito e não pude. Não pressinto o poema cruzando a rua ou prestes a tocar minha campainha. Mas sei que ele é uma espécie de conclusão repentina sobre devaneios conscientes e inconscientes que me rondam por longo tempo. São a consequência do acúmulo lúcido de experiências, mas que dependem de uma centelha de acaso para se materializar de determinada forma. Um poema pode até trazer uma ideia ou percepção de mundo que eu já tinha ou vinha amadurecendo, mas essa forma precisa ser nova ou mais que isso: deve ser exata. É aquilo sendo dito de um certo jeito, e chegar a esse jeito pode dar algum trabalho.
O seu livro, Ferro de espera, como ele surgiu?
Ferro de espera é o nome que se dá àqueles vergalhões deixados nas lajes das construções para que, futuramente, novos andares sejam erguidos sobre elas. É a típica casa brasileira, oscilante entre a incompletude e a possibilidade, e uma maneira de explicar o próprio Brasil. Fui apresentado a essa ideia entre o livro anterior e este, e ela acabou sendo um ponto de referência no horizonte conforme eu ia escrevendo os poemas. “Ferro de espera” não é um conjunto de textos exclusivamente sobre isso (mesmo porque, como expliquei, não consigo planejar os poemas que escrevo), mas boa parte deles contempla a vivência da casa, dos afetos domésticos, da misteriosa sucessão de gerações que nos trouxe até aqui. Poemas sobre o que a família e a casa, ou a falta delas, têm de bom e de ruim. Como país e como pessoas, somos essa obra inacabada, meio com cara de escombro, mas que ainda é nosso refúgio e história.
Qual é o seu verso favorito do livro? Há alguma explicação?
Acho que o último: “só a força da água arrastando tudo”. É o meu ferro de espera para, quem sabe, começar outro livro no futuro.
Como você conheceu a editora Urutau?
Pelo edital que resultou na publicação do “Ferro de espera” e dos livros de outros autores aqui do Rio. Soube dele por intermédio de uma amiga e aí comprei alguns títulos do catálogo para conhecer a editora. Gostei muito do trabalho editorial e gráfico e dos livros que li. É admirável que, num ano tão complicado como este, a Urutau tenha conseguido driblar as dificuldades e publicar um monte de autoras e autores de todos os cantos do Brasil.
Alguma observação que queira acrescentar?
Para mim tem sido uma alegria fazer parte desse processo. Obrigado a vocês da Urutau pela oportunidade e pelo carinho comigo e com o livro.
Nuno Virgílio Neto
Jornalista e músico, nasceu em 1976 no Rio de Janeiro, cidade onde vive. Seu livro de estreia, Eletricaestrela (2017), foi semifinalista do Prêmio Oceanos.