“a poesia explode a realidade” — entrevista com Roberto Dutra Jr.
A 76ª de uma série de entrevistas com as/os poetas da editora Urutau
por Silvia Penas Estévez & nósOnça
Antes de começar, gostaria de agradecer à editora Urutau, na pessoa do Wlad e à Silvia Penas pela elaboração da entrevista. Diálogos com os artistas são fundamentais hoje e sempre e acho que através disso a reflexão sobre arte está viva diariamente. Recebo as perguntas com um apreço afetivo, pois CASA é meu primeiro livro e como todos os primeiros impulsos, há limitações, tanto na obra quanto no escritor, e ainda assim receber esta atenção e leitura traz felicidade pela repercussão do livro.
O que é poesia para você?
A pergunta mais intrigante, sempre é a mais simples, não é? Poderia dissertar por horas sobre isso e lembrar alguns outros poetas que tem respostas teóricas e artísticas incríveis, mas na verdade, acho que serei mais honesto se responder com a primeira ideia que me vier na cabeça. Para mim a poesia é expressão de uma ideia. É a palavra que se combina até ascender a uma dimensão de invocação no leitor. Algo capaz de suscitar uma ideia tão forte que se converte em emoção, contemplação e até verdade. Esta última não no sentido universal, claro, mas no sentido íntimo de cada ser. Ao mesmo tempo, para mim, que escrevo, é ofício permanente, busca de sons, de significados e formas de dizer algo e modular com o som e com o ritmo, de forma que a leitura possa imprimir uma sensação. Sem o ofício, a busca e a coleção individual de palavras, frases, rabiscos, não há matéria-prima para ser convertida em poema.
Quando escreve, pensa em interlocutores? Sua escrita lhe afeta?
Todos os que escrevem, tem como objetivo um interlocutor, mesmo que seja ele próprio: o escritor é seu próprio outro. Porém eu não procuro pensar muito em como o poema será recebido. Quando começo um poema eu preciso que ele atinja sua proposta, seja qual ela for, de modo pleno. Certas vezes um bom poema surge. Muitas vezes um poema nem tão bom surge, então o caminho estava errado. Outras vezes, não há poema ou caminho e o exercício da escrita se esvazia.
Quanto a me afetar, eu creio que sim; afeta-me de modos que ainda não compreendo com totalidade. Percebi isso no processo de reunir os textos para este livro. Entre poemas antigos, que já havia escrito há anos, e poemas que escrevi apenas para o livro, percebi que na releitura eu conseguia me lembrar de todas as sensações que tive e que traduzi em texto. Da mesma forma a angústia e a felicidade surgiam como uma nostalgia que mesmo menos intensa consumia algo em mim. Assim, sendo, acho que é justo afirmar que minha escrita ainda me afeta muito. A publicação do livro permitiu cristalizar cada poema em uma forma que considero final. Logo, o livro é uma maneira de dar asas para cada poema de modo que ganhe o mundo e assim libertado, não possa mais me afetar. Resta em mim, como no leitor, apenas o ato de leitura.
Quais são os poetas da atualidade/vivos/vivas que mais lhe tocam nesse momento?
Roberto: Esta é outra pergunta que me pega de surpresa, mas é importantíssima. Eu olho em minha volta, para minha mesa de trabalho e percebo que leio muito e tenho prazer em reler diversos poetas da atualidade e vivíssimos! Qualquer lista sempre será incompleta, mas vou mencionar rapidamente os que estão mais frescos na minha mente: Samarone Lima (autor de O céu nas mãos e A invenção do deserto), Tito Leite (autor de Digitais do Caos e Aurora de Cedro), Victor Colonna (autor de Cabeça, tronco e versos e Antes que eu me esqueça), Henrique Rodrigues (autor de Previsão para ontem), Letícia Brito (autora de Antes que seja tarde para se falar em poesia). São completamente diferentes entre si e muito diferentes do que escrevo. Os livros deles me afetam porque justamente essa diferença me proporciona uma surpresa, algo inesperado, e a impressão que a literatura se renova no esforço de autores como estes. Como eu disse, qualquer lista neste sentido é injusta por não mencionar todos os nomes. Há muito mais autores de qualidade e meu recorte não é o mais preciso, mas sim de um leitor comum de poesia como qualquer outro.
O que você opina sobre as redes sociais como difusoras de arte? Colaboram de certa forma para a existência da poesia?
Roberto: Eu não tenho muito tempo para as redes sociais. Elas roubam meu tempo de leitura, obliteram o meu pensamento. Faço muito esforço para ter visibilidade nas redes sociais, mas a verdade que a vida offline é tão maior que eu só consigo postar algo se separar um determinado horário para isso, como um compromisso. Sim, elas colaboram de certa forma para a existência da poesia, pois são um meio. Contudo, as redes são um meio de rapidez e esquecimento. Tudo que se faz e subsiste ali é rápido e não toca ninguém por mais que minutos, segundos, ou a próxima postagem. Há momentos que penso que a literatura além de uma frase não existe. Acho que as redes sociais podem sim, sinalizar para livros e que o fundamental da literatura e da poesia existirá fora dali. Aquele que acompanha as redes sociais precisa sair dela para ter contato real com a poesia.
Nos últimos anos tivemos uma série de acontecimentos no Brasil (do fim da era Lula à ascenção da extrema direita) e também uma maior visibilidade aos movimentos de lutas sociais (feminista, LGBTQIA+, indígena, quilombola, anti-racistas…) — isso reverbera na sua criação literária?
Todas as lutas que você mencionou, antes de mais nada importam para mim como ser humano. Existir na América Latina requer uma sintonia com a História e de crítica constante do momento em que se está vivendo. Os acontecimentos atropelam e atropelarão a todos indiferentemente. Minha criação literária não tenta abranger necessariamente nenhum destes aspectos sociais. Entretanto, nos últimos anos a situação no Brasil se tornou tão absurdamente distópica, opressora e incoerente, isto é, sem noções de ética e humanidade no convívio diário, que não consigo escrever nada, seja prosa ou verso, que não esteja impregnado de revolta. Iniciei uma série de poemas que guardo numa pasta à parte e que chamo de poesia para tempos de sangue. Eu olho para esses poemas e esteticamente eles me agradam e além disso, eu escrevo com revolta. Eu não poderia falar de outra coisa ou me abrigar em uma lírica distante enquanto na calçada da esquina pessoas são achacadas e mortas como resultado de um racismo estrutural que permeia nossa sociedade, por exemplo. Acho que coloquei meu ódio nesses poemas. Como sequer pensar em algo diferente neste momento? Isto me consome e me derrota e tento, como posso jogar na arte para que em algum momento não me destrua.
Eu não sei se esta série irá se consolidar em livro. Quando tiver escrito uma centena de poemas com essa tônica eu vou selecionar e submeter ao meu editor. Se ele achar válido, darei continuidade. O momento atual em qu vivemos não está no livro CASA. Este foi concebido anos antes desse momento terrível. O que eu posso acrescentar sobre a reverberação que passou a existir na minha escrita descrevo desta forma: depois de dez mil mortos pelo Covid-19, passei a sentir fisicamente uma sensação de sufocamento. Agora, o Brasil passou de 35 mil mortos com pelo menos uma morte por minuto. Esta realidade me afeta e tudo que quero escrever, pois me enoja como ser humano o descaso das políticas sociais e não consigo usar outro viés que não seja o do ódio, ou a mais profunda tristeza para me expressar agora.
O seu poema nasce de súpeto, como algo que golpeia e sai de uma maneira explosiva e rápida ou é um processo mais pausado e longo?
Meu processo de escrita, seja prosa ou verso, já passou pelo súbito. Você de repente está arrebatado por uma ideia e percebe que será ótimo desenvolver um poema nesse tom. Porém depois de algum tempo isso oferece uma limitação. Ninguém consegue apenas ter boas ideias e transformar em bons poemas o tempo todo. Eu precisei me impor mais ofício, mais técnica. Há alguns anos eu me obriguei a escrever ao menos uma página por dia. Faço isso para evitar qualquer bloqueio criativo que se imponha. A minha coluna semanal na Zonadapalavra (zonadapalavra.wordpress.com) ajuda nisso. Sem regularidade não percebo o progresso do que escrevo. Assim, meu atual processo de composição passa por colecionar ideias de poemas, que escrevo em papéis e que sempre carrego comigo. Depois de algum distanciamento do ímpeto original eu começo a pesquisar sinônimos para as palavras, versificar corretamente, se for o caso, e pensar cada verso integralmente. O poema se resolve no tempo, vou maturando, eu busco uma palavra precisa, ou que me satisfaça naquele momento. O processo todo pode demorar, mas há poemas que resolvo no mesmo dia. Há outros poemas, longos, que estou trabalhando há anos e ainda preciso finalizar.
O seu livro, CASA, como ele surgiu?
Uma tarde, a poeta Helena Ortiz conversava comigo e me disse: “Não faças plano, não faça nada. Estás pronto e está tudo escrito. Pegue o que tiver de melhor e coloque tudo junto.” Ela foi tão enfática que percebi que tinha que dar um basta e dar vida a esse livro. Foi preciso ouvir isso de alguém que admirava como poeta para que finalmente percebesse que estava me sabotando e postergando algo importante. Percebi que esse passo precisava ser dado de qualquer maneira e passei o ano seguinte selecionando e finalizando os poemas para que não parecessem simplesmente colocados de qualquer maneira nas páginas. Surgiu uma unidade que acabei por chamar de Casa. Eu havia construído uma casa de versos para mim. Esta é minha concepção deste livro como objeto de arte: paredes de versos em que alguém possa existir.
Qual é o seu verso favorito do livro? Há alguma explicação?
Eu não tenho um verso favorito. Por outro lado, gostaria de dizer que os poemas deste livro tiveram um ponto de partida semelhante: os primeiros versos surgiram na minha mente de uma vez. Uma ideia central que me pareceu coerente em termos de ritmo. Então desenvolvi o que estava invisível daquele primeiro verso. Há um poema que acredito ser a coluna central do livro como obra, e talvez este seja o meu poema favorito do livro: chama-se Samovar. Acho que consegui uma economia de palavras e ritmo ali. Parece apenas o essencial, nada mais. A partir dele eu comecei a colocar o que acho que faria sentido ser lido até chegar a este poema e ser lido após este poema.
Como você conheceu a editora Urutau?
Eu soube que o Tiago Fabris Rendelli, editor, estava procurando revisores que tivessem leitura e experiência com poesia contemporânea. Eu me candidatei e comecei a trabalhar como revisor para a editora. Aos poucos fui prestando atenção na linha editorial, nos projetos gráficos e na valorização aos novos autores que a editora promovia. Eu passei a considerar a Urutau como a escolha mais acertada para que os poemas recebessem um tratamento gráfico adequado e quando surgiu a oportunidade de uma chamada para autores novos, eu submeti meus originais.
Alguma observação que queira acrescentar?
Eu não tenho observações a acrescentar, aqui tento me colocar mais como um escritor, eu também sou professor, mas o que tenho a dizer eu digo quando sou perguntado. Assim, como eu mencionei acima uma série de poemas que se impôs na minha escrita, chamada poesia para tempos de sangue, eu prefiro finalizar com alguns poemas e não deixar sem exemplos algo que mencionei.
MATAR A ESPERANÇA (poesia para tempos de sangue)
o antipássaro vigilante
abre suas asas de metal
sobre todas as crianças
o céu entrou pelas costas
não mais que um instante escarlate
oito anos se passam
muito mais depressa
que oito versos
BANDOLEIRO (poesia para tempos de sangue)
meu coração é um coquetel molotov
que não posso acender, então explodo
a palavra, letra por letra até sobrarem
as tônicas abafadas, os objetos cortantes,
os desejos insones, os cacos, todo o lodo
da rua abafando a garganta e a liberdade.
meu coração no papel é vermelho rabiscado,
intragável, violento, azedo, uma bile
que trago enjaulada no peito, um aperto,
uma forma de desespero, sempre que eu vejo
a opressão embaixo de qualquer viaduto,
papelão, concreto, granito pontiagudo:
a real presença dos nomeados ao estado.
meu coração é denso, rubro e maculado
uma tempestade, um combate sem céu,
que um dia sobre as escadas do palácio
acederá incendiário.
VOLTAMOS À PROGRAMAÇÃO NORMAL (poesia para tempos de sangue)
O mundo está ardendo
Está quente, muito quente
A esperança crepita
A terra estala na sua pele
Carbonizada —
Nenhum chão sob os pés descalços
O país está ardendo
Mente-se muito, sabe-se menos
Quem dera um mestre
Fizesse passar essa dor
Desumana —
Ninguém acode descamisados
A cidade está ardendo
As armas e os baróes já dispararam
As mães gritam suas crianças caídas
Em pedaços lado a lado ao inefável
Descaso —
Não há vida além deste mandato
Voltamos à programação normal:
É impossível ser feliz
E informado.
ATO PÚBLICO (poesia para tempos de sangue)
eu sei que se atravessasse a rua
atravessasse a faixa
abaixasse a cara
e deixasse a caminhada
minha mão encontraria a sua
eu sei que a luta é longa
que a vantagem é pouca
que a boia falta
e ainda por cima a vida
é curta pra levar tanta porrada
eu sei que estamos cercados
que a cidade exuda fogo e esgoto
que as bombas surgem no lugar do diálogo
e que a esperança não vale o que pagam
vergonhosamente ao fim da jornada de trabalho
eu sei que quando atravessar a rua
rompendo a fúria descabida dessa guarda
driblando as botas como um santo de várzea
e surgir invicto de susto borracha e bala
minha vida encontrará a sua e de mãos dadas
incendiaremos o país
a poesia explode a realidade
Roberto Dutra Jr.
é carioca e insulano, nascido nos anos 70. Usa máquina de escrever, revisa com lápis e mantém as ideias em blocos de nota. Publicou textos críticos, resenhas e contos em revistas acadêmicas e de literatura. Nos anos 2000, contribuiu com o Panorama da Palavra, em formato de jornal impresso e leituras no teatro, idealizado pela poeta Helena Ortiz. Teve seus poemas publicados nas antologias: Escriptonita (Patuá, 2016) e Porremas (Mórula, 2018). É colunista regular do blog literário Zonadapalavra. Em 2018 foi aceito pela Urutau, casa editorial em que agora publica este livro de poemas.