“A poesia é o lugar onde a poética, a estética e a política se incendeiam” — entrevista com Álvaro Seiça

editora Urutau
6 min readMar 12, 2021

115ª de uma série de entrevistas com as/os poetas da editora Urutau

por Silvia Penas Estévez & nósOnça

Álvaro Seiça (Aveiro, 1983)

A poesia é uma forma de ver o mundo?

A poesia é certamente uma das muitas formas de observar e celebrar o mundo. A poesia celebra a vida, contando as nossas estórias. Como trata de variações imprevisíveis da linguagem, deixa registos orais, visuais ou escritos no confronto com o mundo que podem ser singulares e, ao mesmo tempo, universais. Mas a poesia não procura só ver. Procura absorver com todos os sentidos e marcar a mudança poética, que é um modo de resistir contra a repetição da linguagem gasta, a linguagem sem questionamento. A poesia que me empolga e que eu procuro resiste contra as injustiças e o absurdo do mundo, enquanto luta por um discurso que possa abrir novos campos, não canteiros. A poesia é o lugar onde a poética, a estética e a política se incendeiam.

Quando escreves, pensas em alguma leitora/leitor imaginária/o? Se vês afectado por aquilo que escreves?

Não. Mas já me aconteceu pensar numa pessoa como interlocutora daquele poema. Em geral, dependendo do trabalho, penso certamente no registo e no veículo em que a leitura acontece. Por exemplo, se é um livro, uma partitura para ler num espaço público, uma improvisação com outros poetas, uma instalação, um autocolante, uma obra digital, etc.

Achas que há leitores de poesia ou só os poetas se lêem entre si?

Uma das casas dos poetas é a leitura de poesia e, portanto, é natural que habitem essa casa com mais frequência. Mas eu conheço pessoas que lêem poesia e que não escrevem e outras, até, que lêem poesia, que escrevem poemas, mas que não se consideram poetas!

Que opinas sobre as redes sociais como difusoras de arte, recitais etc.?

As redes sociais são espaços privilegiados para encontrar o outro e para partilhar, que me parece o acto mais importante da escrita e leitura. Estou a pensar em redes sociais como as livrarias, as salas de espectáculos, os festivais. Mas, claro, hoje temos outro tipo de redes sociais digitais que moldam novas formas de comunicação e difusão. Eu acho importante as pessoas encontrarem os espaços que mais as cativam e preenchem, mas que não sejam obrigadas a entrar em certos espaços comerciais e hegemónicos para aceder a conteúdo. O movimento de redes mais pequenas e autónomas, como as redes federadas, é muito importante nesse sentido, bem como a utilização de plataformas livres, criadas de raiz pela comunidade sem interesses corporativos.

O teu poema nasce de súpeto, como algo que golpeia e sai de uma maneira explosiva e rápida ou é um processo mais pausado e longo?

Há imagens que irradiam num momento. É importante registá-las logo, o que nem sempre é possível. Mas o poema é um processo, não é inspiração, e mesmo essas imagens repentinas, quando registadas, logo se desenvolvem e se transformam em processo. O processo é muito importante, porque desencadeia novas associações. Há momentos mais inspirados do que outros, mas mesmo esses têm que ser trabalhados. A escrita é sempre reescrita. E a escrita muitas vezes nasce da leitura, o que pode acontecer em segundos ou em anos.

Supressão (editora Urutau, 2019)

Este livro, Supressão, como surgiu?

É uma longa estória, visto que o processo do livro se desenvolveu ao longo de dez anos, ou talvez até mais. O livro iniciou-se com alguns poemas, numa altura em que eu andava preocupado com o que fica e se efectiva na estante, com o que é institucionalizado, com o que é alheio à literatura, mas que, por cercá-la, veiculá-la e moldá-la, acaba por se imiscuir no seio da literatura. Quando um dia, talvez entre 2005 e 2007, me foi oferecido um livro de uma biblioteca carimbado na goteira com a mensagem “para abate”, pensei: Aqui está! Por que ficam uns e outros se destroem? (É curioso que o livro, por acaso e apesar de eu nunca o ter lido devidamente, se chamava Literatura Comestível). A partir daí foram-se juntando outros poemas em tradução, sobretudo numa época em que eu estava desempregado na Suécia, mas com mais tempo para trabalhar neste volume. Assim, coligi a obra de quatro poetas: Azra Azinatti, Ossip Scig, Tatsuo Bodaresu e Íon Skyggen. Há várias razões pelas quais decidi juntar e traduzir as suas obras, mas julgo que foram dois os grandes motivos que as atraíram: os mecanismos da linguagem nos dispositivos extraliterários e o primado sociopolítico das suas narrativas.

Qual é o teu verso favorito do livro? Poderias explicar o porque ele é o teu verso favorito?

Como se trata de uma antologia, há vários poemas e versos de que gosto muito, mas seria injusto nomear algum favorito, quer para esta autora ou para aquele autor. Espero que o trabalho destes autores seja valorizado e que as versões dos poemas enriqueçam o panorama dos leitores de língua portuguesa.

Como conheceste a Editora Urutau?

Foi numa noite calorosa. Soube através do Nuno Moura, poeta e editor da Douda Correria, que uma nova editora iria fazer um lançamento no saudoso bar Irreal, em Lisboa. Nessa mesma noite, aconteceu algo extraordinário, pois não só conheci, como tive longas conversas com o Wladimir Vaz e a Judite Canha Fernandes. Foi uma noite belíssima, de celebração!

Alguma observação que queiras acrescentar?

Este ano está a ser extraordinário, mas por motivos menores e complicados para muitas pessoas. Tem sido difícil aguentar a solidão e conviver com um vírus que é invisível, mas que dá forma ao ar, esse meio que nos une e nos sustém. Um vírus que nos lembra que a actividade humana, que explora e destrói o outro e a biodiversidade, tem consequências palpáveis e tenebrosas para o próprio ser humano e o ecossistema onde habita. E como resolver este paradoxo da estupidez humana? Para mim tem sido muito importante a leitura, como modo de atravessar com bonomia estes dias difíceis. Foi assim que me agarrei ao mastro do veleiro do Luis Sepúlveda, um autor também extraordinário, mas por motivos maiores, que infelizmente pereceu com COVID-19. Fiquei muito triste. Acabara de ler História de uma Gaivota e do Gato que a Ensinou a Voar e talvez estivesse já no livro O Velho que Lia Romances de Amor, cujo tema é presciente da actual catástrofe, quando soube que Sepúlveda morrera. O seu legado narrativo é tal que já vou no sexto livro só este ano. E espero ler tudo o que escreveu. Acho que, apesar de o ter desejado, nunca me tinha acontecido isso com nenhum/a autor/a. Comecei a percorrer alfarrabistas e a guardar livros dele lá em casa, como mantimentos que me acendem a lareira à noite. O Sepúlveda tem essa qualidade de contador de estórias. Nele, a poética, a estética e a política incendeiam-se.

Álvaro Seiça

é um escritor e investigador português. Seiça é Marie Skłodowska-Curie Fellow na Universidade de Bergen, na Universidade da Califórnia, Los Angeles e na Universidade de Coimbra, com o projecto “The Art of Deleting”. O projecto investiga a poética e política da rasura e é financiado pela UE. Seiça é doutorado em cultura digital pela UiB, com a tese “setInterval(): Time-Based Readings of Kinetic Poetry” (2017). Publicou os livros de poesia Supressão (2019), upoesia (2019), Previsão para 365 poemas (2018), Ensinando o espaço (2017), Ö (2014) e Permafrost (2012), e a monografia Transdução (2017). Vive em Bergen, na Noruega.

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