“acuso ao tempo a criação de tudo” — entrevista com Danilo Minharro
108ª de uma série de entrevistas com as/os poetas da editora Urutau
por Silvia Penas Estévez & nósOnça
O que é poesia para você?
É a vida mesmo. Está nas coisas pra gente ver, inventar.
É invento sobre o inventado, dar a ler pelos próprios olhos. Viva, acontece em si, no entre e em nós, no íntimo.
Quando escreve, pensa em interlocutores? Sua escrita lhe afeta?
Os processos variam muito. Minha formação e ofício são no teatro, então é muito comum pensar as palavras faladas, nos sons que vão produzir, nas relações que são capazes de estabelecer. Por outro lado, escrever é pra mim um precioso exercício de liberdade, cujo compromisso é de uma natureza muito pessoal. Existem os textos que já nascem com a pretensão da escuta, enquanto que outros surgem de maneira mais introspectiva, quase terapêutica.
De todo jeito, cada processo está conjugado com uma série de afetos, conjugado num monte de vida.
Quais são os/as poetas da atualidade/vivos/vivas que mais lhe
tocam nesse momento?
Notei que boa parte dos poetas vivos que me tocam são amigos; pessoas que entraram em minha vida por caminhos que não necessariamente o da poesia. É bastante gente. Alguns nem foram publicados ainda, ou exercem sua poesia em outras linguagens. Pra citar algumas dessas pessoas, que me vem à cabeça agora, tem Ian San, Isabela Penov, Camila Duarte, Danilo Monteiro, Letícia Negretti, Caco Pontes, Lívia Xavier…
O que você opina sobre as redes sociais como difusoras de arte?
Colaboram de certa forma para a existência da poesia?
Acredito que em termos práticos, como difusão de materiais e fonte de referências, sem dúvida que colaboram. Elas possibilitam que a produção e a difusão aconteçam quase que simultaneamente, reduzindo bastante a mediação entre artista e público.
Mas acredito que a existência da poesia não depende da eficiência da sua difusão. Uma poesia segue sendo uma poesia, no Facebook ou numa troca de cartas.
Nos últimos anos tivemos uma série de acontecimentos no Brasil
(do fim da era Lula à ascensão da extrema direita) e também uma
maior visibilidade aos movimentos de lutas sociais (feminista,
LGBTQIA+, indígena, quilombola, anti-racistas…) — isso
reverbera na sua criação literária?
Sem dúvida que reverbera, na medida em que esses acontecimentos também me afetam. Sigo sendo transformado pelo meu tempo, e esse dado reverberaria na minha produção mesmo que eu tentasse negá-lo. Acredito que a arte trave batalhas no campo de linguagem, disputando símbolos e narrativas. Por outro lado, embora reconheça que na minha poesia a crítica seja um traço bem marcante, não tenho a pretensão de que o meu discurso transforme nada, porque isso cabe às pessoas fazerem concretamente, na maneira como lidam com cada situação cotidiana, na construção permanente da realidade da vida.
Acredito que a poesia seja transformadora pelo lugar privilegiado que ela ocupa em nossa imaginação: é um lugar de encontro; podemos nos emprestar olhares e sensibilidades e, por meio das palavras, experimentar outras vidas. Nos ajuda a projetar outras existências sobre a existência conhecida e esse exercício de ampliação do próprio universo é transformador, porque nos aproxima do outro, nos lança pro outro que há em nós.
O seu poema nasce de súpeto, como algo que golpeia e sai de uma
maneira explosiva e rápida ou é um processo mais pausado e longo?
Depende. Tem poemas que nascem de uma vez, de forma mais impulsiva, procurando dar forma a uma sensação mais imediata. Outros são ruminados por um longo tempo, esboçados, medidos, mudados; esses geralmente estão mais ligados a alguma ideia ou imagem específica que queira desenvolver. Tenho um poema que surgiu como ideia e foi ser efetivamente escrito anos depois.
O seu livro, Metropos e a vida de seus paulicenos, como ele surgiu?
Foi um processo bastante longo. O livro foi escrito ao longo de dez anos, entre os anos de 2006 e 2016, e foi sendo montado no tempo, sem a pretensão inicial de ser publicado. À medida que ia produzindo mais poemas, fui notando que a cidade era um tema central pra mim, muito da poesia estava em observar seus movimentos, sua funcionalidade que está acima de nossas vidas e, ao mesmo tempo, movida por elas.
Acho interessante esse lapso de tempo entre escrita e publicação que, por ter levado tanto tempo pra ser escrito, lendo o livro hoje, consigo identificar varias fases da minha própria experiência na cidade, e que se reflete na forma e no assunto dos poemas. Tem também a questão da atualidade, tanto em termos de relevância em relação ao nosso tempo, como nos termos de o que é urgente para o artista expressar. Hoje, quando leio as poesias de “Metropos”, me intriga a distância que há entre essas duas dimensões de atualidade: sinto que já não sou a mesma pessoa que escreveu esses poemas, muito no meu olhar mudou, com o passar dos anos; da mesma forma, sinto que talvez os poemas sejam mais atuais hoje do que quando foram escritos. Sinal dos tempos.
Qual é o seu verso favorito do livro? Há alguma explicação?
Essa é uma pergunta difícil, principalmente porque a minha sensação em relação aos versos que escrevo varia muito com o momento. Mas fico com esse aqui:
“Se o pé se firma em vento,
acuso ao tempo a criação de tudo
e mudo, peço
força e leveza, vibrando
uma coragem confusa que levita,
não pisa.”
Não é exatamente UM verso, mas escolhi esses alguns versos, pela sinceridade do desejo que expressam e porque, de alguma forma, reconhece potência e fragilidade como partes uma da outra.
Como você conheceu a editora Urutau?
Admito que seja bastante ignorante sobre o universo editorial e os círculos literários. A publicação do livro felizmente está transformando isso, me fazendo entrar em contato com todo um universo novo.
A Urutau eu conheci pelo Instagram, indicado por uma amiga que viu uma postagem de divulgação da seleção de livros de poesia em São Paulo. Quando passei a seguir a editora, percebi que alguns título e poetas conhecidos haviam sido publicados por ela, ou seja: meu desconhecimento era mais falte de atenção que de acesso.
Alguma observação que queira acrescentar?
Gostaria de agradecer imensamente a atenção, e o carinho com que foi realizado todo o processo de publicação. O trabalho da editora, como difusora da literatura e, principalmente a preocupação em criar espaço para que novos poetas sejam lidos e celebrados é realmente muito importante. Essa prática importa não só pelo reconhecimento que é tão caro para qualquer artista, mas pelos encontros e movimentos que promove. Voemos! Evoé!
Danilo Minharro
Danilo Minharro nasceu na Zona Leste de São Paulo, no hoje extinto hospital municipal da Penha, na véspera do carnaval de 1988. É formado em Licenciatura em Artes-Teatro pela Unesp.
Oriundo da mistura familiar: avô baiano com avó italiana, avô espanhol com avó preta. Caldo em que se juntaram militância política, poesia, mitologias, curanderia e palhaçaria, através das gerações.
Durante a adolescência descobriu, por meio do teatro, as artes como possível caminho de potência e expressividade. Ao longo de sua trajetória, atuou em diversos coletivos artísticos, em trabalhos que envolveram crítica política, Teatro do Oprimido, teatro de rua, intervenção urbana em debate sobre territórios e direito à cidade.
Como educador, atuou também em diversos espaços, como Fundação Casa e centros comunitários. Trabalhou em programas de formação artística e se dedicou à formação docentes, fornecendo ferramentas artístico-pedagógicas para o trabalho junto a comunidades de São Paulo e Santo André.
Atualmente, desenvolve pesquisas sobre narrativa, debruçando-se sobretudo em histórias urbanas, seja por meio do realismo fantástico, seja buscando formas de recontar a história da formação do próprio espaço da cidade.