editora Urutau
10 min readJan 9, 2025

Apresentação do livro “O sol em Maio”, Isabel Milhanas Machado, por Brígida Paiva.

“A poesia é também esse suster de respiração, é também o punho fechado que não vemos, prestes a atingir a pele tenra do nosso ventre”

Rodolfo Freitas, Brígida Paiva e Isabel Milhanas Machado na Livraria Snob, Lisboa

Livraria Snob, 18 de dezembro de 2024

Boa tarde. Agradeço a vossa presença e agradeço, do fundo do coração, o generoso convite da Isabel Milhanas Machado para apresentar o seu novo livro. Para quem não sabe, eu e a Isabel conhecemo-nos há algum tempo, aliás, desde os tempos da escola secundária. Acompanho as publicações, os escritos e as encenações da Isabel desde essa altura, e é verdadeiramente um privilégio lê-la e estar lá nos lançamentos dos livros dela. Por isso, nem imaginam o quanto me tocou que a Isabel me convidasse para falar um pouco sobre este seu novo livro, sobre estes poemas (apesar de saber que a Isabel fica um pouco relutante em chamar a estes seus textos poemas, uma opinião da qual discordo com todo o carinho e admiração possíveis).
Há umas semanas, a Isabel e eu combinámos encontrar-nos para pôr a conversa em dia e para ela me entregar uma cópia deste seu novo livro, que, além de delicado e impactante no seu interior, como podem ver, tem uma capa espetacular, uma qualidade à qual a editora Urutau nos tem habituado. A Isabel e eu estávamos a beber chá de limão no Galeto, ali no Saldanha, quando ela me entregou o livro. Não estávamos muito longe da nossa antiga escola, e falámos sobre o quanto certas partes de Lisboa nos transportam instantânea e sentimentalmente para o passado. Posso dizer-vos que é um privilégio muito curioso, este de conhecer pessoalmente quem escreve. A pessoa que está à nossa frente é-nos, ao mesmo tempo, conhecida e desconhecida. Conhecer pessoalmente um escritor, um poeta, é uma experiência um tanto ou quanto invasiva. Os poemas da Isabel eram, como ela, ao mesmo tempo, familiares, e desconhecidos. Os da coleção Azul e Verde (Gato Bravo, 2022) marcaram-me, alguns deixaram-me a ponderar sobre a sua matéria-prima, as raízes, digamos, de onde nasciam. Naquele dia, enquanto conversava com a Isabel no Galeto, senti a vontade súbita de corromper este sigilo. Então perguntei à Isabel: «Belinha, aquele poema… será que é sobre…?» Pergunta mais imperdoável e inconsequente, mais inconveniente, até, não poderia haver. «Este poema é sobre isto?» Nem parece que estudo e que ensino literatura.
Mas se é verdade que os autores são nomes em lombadas de livros, entidades incorpóreas e de folhas perenes, quem escreve é um organismo vivo, que também come e também faz perguntas ridículas e também chora. A minha pergunta, aliás, fez a Isabel chorar, algo pelo qual ainda não me perdoei. Os poemas da Isabel também me fazem chorar, mas isso é outra história. Chamemos-lhe os ossos do ofício. Quando li o livro que é lançado hoje, ocorreu-me, por vezes, essa mesma pergunta inconsequente e invasiva: «será sobre…?» Conhecer um escritor, um poeta, é como andar a pé pela rua à noite e depararmo-nos com uma janela aberta, a luz acesa no seu interior. Deverei espreitar para dentro dela? Deverei chamar pela Isabel, para que me responda?

O Sol em Maio que tenho em mãos é um fruto maduro, breve e incisivo. Grande parte dos poemas aqui são curtos, a sua existência dúplice — existem no que é dito, mas, também, no que se cala. Quanto mais curto é um poema, mais cada palavra, cada vírgula e cada quebra pesa com as suas possibilidades. Os poemas da Isabel são um exercício na arte da intenção. À semelhança de um haiku, ou de um bilhete rasgado que guardamos por nos lembrar algo bonito, os poemas da Isabel são descritivos na sua contenção. É um livro pautado por interrupções, por palavras intercetadas, como se ouvíssemos uma conversa através de uma porta entreaberta. Alguns têm apenas uma linha, como o da página 23: «Talvez o teu corpo se enrole de mansinho». A poesia é também esse suster de respiração, é também o punho fechado que não vemos, prestes a atingir a pele tenra do nosso ventre — tal como na página 53, onde está o verso «Morres num mover de mãos». Ao contrário do que estou a tentar fazer aqui, agora, a poesia está na certeza desse sentimento, sem a necessidade de o explicar. Não é preciso. A pausa sustém-se e o que não é dito torna-se, nas palavras exímias da Isabel, ainda mais claro. Basta uma sugestão e o poema escreve-se por si, sem se explicitar. Como quando dizemos, «quem cala…» Sabem o que se segue, não sabem? «Para bom entendedor…» Não é verdade? A Isabel apresenta-nos vários momentos assim, ao longo deste livro. Como na página 41: «Se sofrer, não». Entendem, não entendem?
E a verdade é esta — como dizer a morte? Como expô-la ao olhar dos outros? Como explicar a perda, como contá-la sem mencionar como o sol aquecia o seu corpo dourado, sem mencionar o momento em que se apaga a luz antes de ir dormir, sem perceber a solenidade de um simples gesto, como o de tomar um comprimido. Como a vida é breve e quão breves somos. Estes vislumbres, todos retirados de poemas desta coleção, relembram que um dia de sol passa e só mais tarde é que iremos entender o que significava. Como conclui o poema da página 13 e 14, «e foi assim / vida / anos / tantos passeios / como foi / foi / bonito».
Este é um livro que reconta pequenas mortes, mostrando-nos como é a convivência diária com a realidade dela. Fala da morte no seu instante mais particular, na sua escala mais irredutível. Na sua inocência e aparente insignificância, no quão banal é, e, mesmo quando se sabe o quão banal é, o quanto nos devasta, alegra e pontua, porque estamos rodeados de perda, de evidências de dias felizes, mesmo que não o saibamos ainda.
O Sol em Maio divide-se em duas partes. Começa com «Em maio», seguido de «O Sol». Dizer que a primeira parte é sobre a morte de um cão é dizer tudo e, ao mesmo tempo, não dizer nada. Os poemas da primeira parte são sobre esse confronto inevitável, sobre o reconhecimento de que a morte e a perda têm uma existência simultaneamente privada e pública. A devastação interior nem sempre é visível de fora, nem reconhecida enquanto devastadora. O luto é muitas vezes irreconciliável com a expressão e a expectativa que, de fora, nos é colocada. Como o momento em que, na página 29, a sequência de poemas é interrompida pelos versos «E com toda a paciência do mundo eu oiço / É só um cão».
Viver com a perda é também viver a violência de a termos de suprimir antes do tempo, de termos de engolir em seco e ir trabalhar, de ocupar espaços onde a nossa dor é inconveniente, não palatável. Temos de nos vestir e cruzar-nos com pessoas e enfrentar o amanhã — como diz o poema da página 31, «Desenvolvo a vitalidade / meto-me em água corrente / coloco-me em sete palmos de terra / utilizo receitas milagrosas / para esquecer/ que afinal / amanhã é para regressar».
Já Joan Didion referia, no seu avassalador O Ano do Pensamento Mágico, que «[a] vida modifica-se rapidamente. A vida modifica-se num instante. Sentamo-nos para jantar e a vida, como a conhecemos, acaba.» Viver com a perda coloca-nos a uma certa distância, é uma marca sobre a nossa pele que nos leva a crer que ninguém poderá entender a nossa tristeza e que não somos capazes de a transmitir de forma a sermos entendidos. Viver com a perda é relativizar, é ter paciência — como diz o poema da Isabel, é ouvir «é só um cão,» «está num lugar melhor,» «ao menos já não sofre,» e outras desvalorizações de índole variada, quer bem-intencionadas, quer não.
Na segunda parte deste livro, chamada «O Sol», há uma espécie de despontar. Há uma demarcação entre o espaço construído «em maio,» uma esperança, talvez, que acaba por revelar uma inevitável continuidade. Será preciso dizer sobre o que trata esta parte? A morte é nomeada várias vezes — «morres,» «morro,» «enveneno a tua laje,» «subtrais o teu corpo ao meu,» são palavras que se entrecortam e que aludem a outra subespécie de morte. «E eliminar do meu corpo / qualquer semente que germine», começa o poema da página 59. Será necessário nomeá-lo? Quando o penúltimo poema começa, o reconhecimento foi instantâneo, como um embate. «Beber café para que morra,» começa este poema, «mete-se à escuta de possíveis movimentos / agarra a barriga como uma massa mole / e massaja-a / até ter dor.» Quanto à do café, não é preciso explicar. Essa sussurrou-me a minha avó, no mesmo sussurro em que me contou que a tesoura de cortar o cordão umbilical estava escondida algures na casa, longe da vista de todos. A vida e a morte entrelaçando-se na sua valsa eterna.
A segunda parte deste livro culmina numa imagem terrena, que se pressagiou na primeira parte. Diz o poema da página 11 que «crescem bolbos da minha terra,» depois perguntando «porque nos trouxeste?» para depois rematar que «nem à terra pertence.» Outro poema da primeira parte diz ainda «sou adubo diluído / desenvolvo as minhas raízes / e enterro-me num vaso.» Já mais próximos do fim do livro, as mãos massajam o ventre até ao ponto da dor, massajando-o, e cito, «como se apalpa a terra depois da plantação.» Será mesmo preciso perguntar do que se trata? Talvez fazê-lo confirme uma pequena suspeita. Talvez escrevê-lo o transforme em outra coisa. Escrever sobre cães, sobre plantas, sobre fetos, sobre orquídeas, lembrar que podemos chorar um animal e que somos também animais, somos adubo, somos matéria viva e natureza morta. Somos um bolbo, nunca deixámos de ser terra. «Então vamos lá ver,» diz o poema da página 11, o segundo desta coleção, e cito: «somos Cypripedium e vivemos ao nível do solo / (…) sou Cymbidium afinal / ou nem à terra pertenço.» São os nomes científicos de duas espécies de orquídeas, plantas que, como a humanidade, são perenes além dos seus intervalos. Lembrou-me, inevitavelmente, o poema de Louise Glück sobre a íris selvagem, que, na tradução de Ana Luísa Amaral, afirma «no fim do meu sofrimento / havia uma porta. / Ouve-me bem: recordo aquilo / a que tu chamas morte.»
Perante a perda dos outros, angustia-nos a ideia de não dizer a palavra certa. Quando acontece, na verdade, nem sabemos o que dizer. De súbito, todos os lugares-comuns se tornam evidências. Quem está na nossa intimidade, que está lá quando apagamos a luz do quarto, vê no escuro aquilo que de fora não se consegue antever. Como diz o poema da página 19, «Vamo-nos deitar / e eu finjo que não vejo / a tua lágrima escorrer / quando me dizes que / a vida é mesmo assim /(…) é a lei natural das coisas /e todas essas frases que dizemos para nos esquecermos / chorar por um cão / e saber que é por nós que choramos.» Este poema, que me fez chorar, vingou as lágrimas que provoquei à Belinha naquele fim de tarde no Galeto; lembrou-me, novamente, Joan Didion e o ano do pensamento mágico, quando afirmou que não somos ideais, somos seres mortais e imperfeitos, conscientes da nossa mortalidade ao mesmo tempo que a empurramos para longe da nossa vista, e que, quando lamentamos as nossas perdas, lamentamos, na verdade, a perda de nós próprios. De quem nós éramos, como já não somos. E que, um dia, não seremos mais.
Viver com a perda é depararmo-nos com ela sem preâmbulo, como diz Didion — é virar a esquina e encontrá-la sem estandartes e sem aparato. O poema é o instante em que isso é captado. Na página 27, o poema é sobre esse deparar, sobre estar entre as rosas e enxotar uma abelha que se aproxima, para depois perceber que «a abelha veio de longe / talvez do teu sítio / e fez o que pôde / para na minha rosa branca / se deitar.» É este lembrar, que pousa sobre nós, leve, que nos toca no ombro, e que, quando nos voltamos, nos leva a pensar «Ah, estás aqui.» Na verdade, nunca partiste.
É difícil resumir os pensamentos que este livro e estes poemas me suscitaram. Pensei em canções, em fotografias, em coisas que irei partilhar com a Isabel mais tarde. Pensei em mim e nas minhas mortes, também. Nesta época do ano, não há como não pensar nos lugares vazios à mesa. «Enquanto um de nós estiver vivo, seremos sempre cinco,» como diz o poema do José Luís Peixoto. Pensei na morte que está, sem o sabermos, sempre à espreita, nas mortes naturais, nas mortes inaceitáveis, nas mortes pequenas e quotidianas e nas transformações que encerram. A perda dilui a linguagem como um comprimido sobre a língua (como diz o poema na página 65, «dissolvi-te com um comprimido»). Não é preciso perguntar mais nada. É um lugar de entendimento além das palavras. Hoje é quarta-feira e estou grata por este livro, por este momento que aqui partilhamos, pelas amizades de anos e pelos encontros mais recentes. Como diz o poema da página 21, «e todas essas quartas-feiras / seguidas da terça feira / e todos esses sábados que te imaginei ao sol / todas essas vidas que guardaste / numa só única forma de me lembrar / que és todo / e para sempre.» Obrigada.

Brígida Paiva nasceu em Macau no início dos anos noventa. Nos dias úteis, ensina, traduz e está a escrever uma tese de doutoramento em Literatura Comparada. Nas horas inúteis, escreve contos, poemas e não-ficção. Gostava de ter um gato, mas é alérgica. Ainda vive em Lisboa.

O Sol em Maio, Isabel Milhanas Machado, Urutau, 2024.
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