“As palavras para mim são objectos lúdicos por excelência” — entrevista com Elisa Scarpa

editora Urutau
4 min readJul 29, 2020

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A 95ª de uma série de entrevistas com as/os poetas da editora Urutau

por Silvia Penas Estévez & nósOnça

Elisa Scarpa (Lisboa, 1964)

O que é poesia para ti?

A poesia é uma pulsão de liberdade. As palavras para mim são objectos lúdicos por excelência. Libertam-nos dos nossos pensamentos, sensações e tensões

Quando escreves, pensas em alguma leitora/leitor imaginária/o? Se vês afectado por aquilo que escreves?

Não consigo imaginar um leitor, os leitores são muito diferentes entre si, não consigo escolher um, são demasiado complexos. Mas não quero que o que escrevo seja um monólogo, o objectivo é conversar. Enquanto leitora converso muito com a poesia que leio. Pode até ser um diálogo incómodo, com objecções, correcções, iras, mas para mim é sempre um diálogo. O que mais procuro no poeta é ouvir e responder. Leio sempre em voz alta o que escrevo e o que os outros escrevem. Preciso de sentir na poesia o corpo da oralidade. Sou sobretudo uma leitora, acho que sou mais afectada pelo que leio do que por aquilo que escrevo.

Quais são os/as poetas da atualidade/vivos/vivas que mais te tocam nesse momento?

Muitos, há muitos poetas que me tocam. Tocam-me de formas diferentes. E é muito bom, porque acho que estou a ser filtrada pelo espírito deste tempo. Respeito os meus contemporâneos. Procuro continuamente ler poesia, é como ouvir música, não me canso. E de todas as vezes que leio/ouço, leio e ouço mais qualquer coisa.

O que você opina sobre as redes sociais como difusoras de arte? Colaboram de certa forma para a existência da poesia?

As redes sociais libertaram-nos do espaço físico e da ditadura do gosto. Quem tenha acesso à rede, pode numa aldeia remota mostrar o que escreve a muita gente, e isso é extraordinário. Claro que exige mais do leitor: mais vontade, mais atenção, mais pensamento próprio. Porque já não há um pequeno grupo de “especialistas” que decide o que é publicado ou não, o que é bom e o que é mau. Outra coisa boa é a dessacralização da arte. A arte é fantástica e fundamental, não porque seja cultivada por meia dúzia de iluminados, mas sim porque nos é tão essencial como o respirar. Há cada vez mais gente a fazer arte. Cada vez mais a arte faz parte dos nossos rituais de sobrevivência no quotidiano.

Nas redes sociais corre muita poesia, não só a dos poetas consagrados, e isso é fundamental para a vitalidade da poesia. Leio muito na rede, imprimo em papel os poemas que me agradam mais, e isso reforça a minha convicção do que a linguagem é uma matéria infinita. Até o facto de lermos em várias línguas aumenta essa sensação de infinito. A confusão da babel pode ser muito criativa.

O teu poema nasce de súpeto, como algo que golpeia e sai de uma maneira explosiva e rápida ou é um processo mais pausado e longo?

As duas coisas, a primeira versão é de rajada. Mas depois vem o trabalho de depuração. No geral vou reduzindo, reduzindo, reduzindo. E só acaba quando chegam os benditos editor e revisor. Eles é que colocam um ponto final nas indecisões.

Elogio da divergência (no prelo, editora Urutau, 2020)

Este livro, Elogio da divergência, como surgiu?

Foi-se formando, os poemas vão criando uma rede de sentidos entre si.
O texto Elogio da Divergência que dá o título ao livro é a consubstanciação de um sentimento de grande desconforto que me acompanha em relação ao processo de massificação a que assistimos hoje. Parece que temos que viver todos da mesma forma, pensar da mesma forma. A diversidade da espécie humana está em risco (assistimos ao extermínio de vidas e de formas de vida). O pensamento totalitário é patético porque parte do príncipio que há pessoas que tem competências para decidir o que é bom e mau para milhões de pessoas. É um absurdo, e mais absurdo, é obedecermos aos seus ditames.
Não se compreende porque é que um piloto de aviões tem que ser avaliado psicológicamente e um chefe de estado não. Megalómanos, psicopatas não deviam ter acesso a cargos de poder. Mas claro, isso deve acontecer porque nenhum povo tem seguro contra dirigentes loucos, é pena!

Qual é o teu verso favorito do livro? Poderias explicar o porque ele é o teu verso favorito?

Não sei se tenho favoritos, mas há uma cadência que me atrai em: Ao pôr do sol /Sei que os figos /Não são apenas doces/ As rosas não são apenas belas!

Como conheceste a Editora Urutau?

Conheci a Urutau na publicação on-line do Triplov. Fui a vários lançamentos da Urutau, e senti-me muito bem acompanhada. Prefiro ler em papel, faz-me falta o objecto que se pode pegar, folhear, tactear, cheirar.

Leio mais devagar e melhor em papel.

elisa scarpa

nasceu a 7 de janeiro de 1964 e há-de morrer.

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