“«carne e colapso» é uma luta e uma dança entre um corpo e o chão Brasil dos últimos anos” — entrevista com Jessica Stori
A 57ª de uma série de entrevistas com as/os poetas da editora Urutau
por Silvia Penas Estévez & nósOnça
O que é poesia para você?
Até aqui a poesia já foi de um tudo, mas se mantém, primeiro, num jeito de dizer na escrita algumas sensações, cenas e sons que oscilam entre estarem juntos e separados. Encontrei na poesia uma relação entre. Entre o que me atravessa e chega às outras, às mais próximas, e quem sabe, às mais distantes, como um presente descontrolado, algo que eu não espero dar, mas dou, com vontade e constrangimento. Nem sempre com dor, às vezes com suor, euforia, deus e batidas eletrônicas. Cavei e encontrei a poesia como uma voz também minha, sem gritos, mesmo quando alta e em bom som.
Quando escreve, pensa em interlocutores? Sua escrita lhe afeta?
Penso e sou afetada. Acho que na maioria das vezes, as interlocutoras me aparecem na primeira leitura de um texto terminado. Nesse momento em que elas aparecem como ideia, tento uma postura de afastamento e aproximação do que escrevi, numa tentativa de entender a afetação saindo e entrando. O olhar que corta, que diz o que deve cair e o que deve ficar. Um movimento delirante e impossível de revisão, um olhar de novo, do mesmo ponto de vista, mesmo quando pensa ser de vários. Ou seja, a constatação da incapacidade da poeta. Não sabe como vai chegar lá e mesmo assim adivinha. Se eu te pudesse dizer o que nunca te direi tu terias que entender aquilo que nem eu sei. Mas também não é agonizante não saber como vai ser chegar lá, é um trabalho, é um esforço para se fazer o melhor que posso aqui e agora. E por não saber tanto, estou entregue, afetada em todas as dimensões, não preocupada com a resposta, mas interessada no mistério.
Quais são os/as poetas da atualidade/vivos/vivas que mais lhe tocam nesse momento?
Encontrei-me num ajuntamento muito vivo nos últimos anos. Integro a Membrana, um coletivo de escritoras, leitoras, críticas, onde muito se faz em escrita. Então, elas me veem à cabeça instantaneamente, pelo encontro potencializador de nossa criação. Elas são Cali Ossani, Caetano Gisi, Daniele Cristyne, Francisco Mallmann, Ísis Odara, Julia Raiz, Luciano Faccini, Mariana Marino, Nanna Ajzental, Natasha Tinet, Ricardo Nolasco, Semy Monastier, Thalita Sejanes e Yasmin Pschera. Também outras poetas vivíssimas me tocam, para citar as brasileiras, cito essas que facilmente me vem à mente, Andréia Carvalho Gavita, Adriana Sydor, Ana Martins Marques, Angélica Freitas, Beatriz Regina Guimarães Barboza, Dédallo Neves, Estela Rosa, Jussara Salazar, Marianna Camargo, Maria Rita Kehl, Simone Brantes e Valeska Torres.
O que você opina sobre as redes sociais como difusoras de arte? Colaboram de certa forma para a existência da poesia?
Eu gosto das redes sociais e dos encontros que elas permitem. Vejo, num primeiro momento, por duas perspectivas. A utilização das redes como difusora da arte e a carga criativa a ser explorada através do uso dessas plataformas pode ser um potencializador para as trocas e para o próprio fazer poesia. Por outro lado, vejo algumas dificuldades para as pessoas que produzem nas redes. Uma delas é própria frustração. Quando o encontro esperado não acontece ou a pouca audiência ou até mesmo a insegurança de estar nesse espaço e expor um trabalho. Se colocar como artista nas redes sociais me parece ser algo a ser pensado, no sentido de utilizar a rede a partir do que ela propõe, sem ser engolida por ela e sua lógica. Existe um jogo entre aproveitar a rede como artista, ter objetivos naquele espaço, ao mesmo tempo que é necessário questionar e combater a própria lógica que limita a circulação, o público e a temática. Ou seja, a rede também pode moldar a produção de poesia. Não tenho resposta, mas acredito que há uma colaboração para a comunicação da poesia, mas não garante a sua existência. Entendo também que nós, que acreditamos no potencial das redes, precisamos sempre estar reformulando e repensando esse lugar de ocupação, pensando no tempo dedicado ao espaço e absorvendo suas possibilidades. Penso que é um bom tema a ser trabalhado por poetas constantemente. Eu quero estar ali, mas o mais sã possível sobre o que eu faço, acredito e sou.
Nos últimos anos tivemos uma série de acontecimentos no Brasil (do fim da era Lula à ascensão da extrema direita) e também uma maior visibilidade aos movimentos de lutas sociais (feminista, LGBTQIA+, indígena, quilombola, anti-racistas…) — isso reverbera na sua criação literária?
Com certeza. Estar nesse território Brasil, viver, circular, falar e sentir aqui significa em mim e no que escrevo. carne e colapso é uma luta e uma dança entre um corpo e o chão Brasil dos últimos anos. Brigar com o chão e dançar com o chão é difícil, é o que se tem e é o que se é, mas mesmo assim, ainda há tanto a ser feito, tanto a transformar. É necessário dizer a violência em voz alta, mostrar que ela existe, apontar os ódios direcionados não a identidades, mas à sociedade. Quem são as pessoas LGBTQIA+, as indígenas, as negras e as pobres? Colocar no discurso a população como identidade minoritária é também uma prática do projeto de extermínio e de manutenção da marginalização desses grupos.
Escrevo essa reposta em meio à pandemia do coronavírus e assisto o vírus circular pelas cidades, chegando aos bairros mais pobres, nas casas onde vivem cinco, seis pessoas, algumas precisam sair de casa para buscar água, além da comida, além do raso dinheiro para pagar as contas do mês. Mulheres, mães, negras e seus filhos. Indígenas lutando não só contra o vírus, mas contra o domínio de agropecuários sobre suas terras. Mulheres sofrendo violência de gênero acrescida em 50% com o confinamento. Assisto à demissão, neste dia (15/05/2020), do segundo Ministro da Saúde do governo de Jair Bolsonaro. Neste momento, em meio a pandemia, não temos um plano nacional de combate à doença que já tem, notificados, 14.817 mortos (dados do dia 15/05/2020) e não temos plano, não temos onde recorrer. Temos um presidente que pede para as pessoas saírem de casa para salvarem a economia, não a elas próprias. Não suas vidas. Digo tudo isso, pois aqui e agora, sinto em meu corpo o que é viver no Brasil com a presença do fascismo, sim, do fascismo que olha para os milhares de mortos e diz: “e daí?”. O presidente Jair Bolsonaro disse para o povo brasileiro: “eu não sou coveiro”.
Eu sou uma escritora brasileira e sei que viver aqui é muito. Me cabe o registro do feito, do posto por eles e a reinvenção na palavra, do que vejo, nesse horizonte assassino.
O seu poema nasce de súpeto, como algo que golpeia e sai de uma maneira explosiva e rápida ou é um processo mais pausado e longo?
Gosto do que chega como explosão, com rapidez, acho bonito e me impressiona a segurança. Contudo, neste momento que escrevo também desconfio dos que chegam assim para mim. Eles podem vir, eu escrevo alucinada, ponho no papel tudo o que precisa ser dito com a pressa que eles exigem de mim, mas depois repouso. Deixo arder, deixo descansar. Retomo, edito, leio em voz alta. Alguns me levam à exaustão e à desistência, mas a maioria me leva ao que considero necessário, o trabalho com a escrita sem querer domá-la.
O seu livro, carne e colapso, como ele surgiu?
Meu livro surgiu no momento em que decidi me dedicar inteira e consciente à palavra. carne e colapso nasceu da atitude de escrever o que me atravessava como mulher neste território que vivo. Mas não apenas em experiência, neste livro tem muito de observação e falação sobre as outras, para as outras. Desde a relação de uma mulher dedicada a um deus pelo prazer que ele lhe causa, matando culpas e afirmando a necessidade de transcendências até delírios de uma pessoa que conta todas as possibilidades do uso das mãos: o toque, a costura, a escrita. Carne porque corpo, colapso porque queda e ruptura, abertura para outra coisa, outra contação, outra narrativa. Ele nasceu da vontade de narrar o descontrole e me levou até à corrida, ao movimento.
Qual é o seu verso favorito do livro? Há alguma explicação?
Talvez isso mude, pelo menos eu tenho alternado muito os poemas preferidos do livro. Tudo depende. Mas tem um verso, uma estrofe na verdade, que não se desgasta, se renova a cada dia mesmo que seus motivos sejam os mais doloridos. Sei que ele também vai servir quando for para pensar em sorrisos bem dados por aqui.
eu vivo no Brasil
e isso é muito
para se ter em um corpo
Como você conheceu a editora Urutau?
Conheci a Urutau pelo amigo poeta Francisco Mallmann, na ocasião da publicação do seu livro, Haverá festa com o que restar e o da Luana Navarro, Estalactites na garganta.
Alguma observação que queira acrescentar?
Todos narramos. Por nossa memória criamos registros de nossa vida e de nossas relações. Tenho me interessado muito pela possibilidade viva em nós de narrar, de ficcionalizar nossas trajetórias, na potência do registro de mundo presente em toda experiência. Hoje, me parece importante, na medida do possível, criar alternativas senão as postas pela constante sobrevivência. O sobreviver pelo desgaste e pelo cansaço. Estamos cansadas. Que possamos descansar, arder, gritar, chorar. Mas que sempre lembremos da possibilidade de contar, seja pela via do que se vê ou do que se inventa.
Jessica Stori
é escritora e historiadora. Tem 26 anos e vive em Curitiba. É graduada e mestra em História. Suas áreas de pesquisa são a crítica literária feminista, o pensamento decolonial e a memória. Integra a Membrana Literária, coletivo de escritoras/es. Publicou Carne e colapso em maio de 2020 pela Editora Urutau.