“dizer o máximo com o mínimo de palavras, tenham elas as sílabas que tiverem” — entrevista com Abdul Cadre
A 31ª de uma série de entrevistas com as/os poetas da editora Urutau.
por Silvia Penas Estévez
A poesia é uma forma de ver o mundo?
Dizermos «ver o mundo» talvez não seja a melhor forma de enquadrar o relacionamento da poesia com o mundo. Podemos pensar em imagens estáticas ou em imagens em movimento, e nisto, na fotografia e no cinema, temos grandes poetas. Também na pintura. Diria antes que a poesia escrita e dita, quando não exclusivamente intimista, é uma forma de sentir o mundo muito para além dos cinco sentidos objectivos.
Quando escreves, pensas em alguma leitora/leitor imaginária/o? Se vês afectado por aquilo que escreves?
Quando escrevo poesia não penso em ninguém em particular, escrevo sobretudo como um acto de contrição, uma terapia da alma. Assim, talvez tenha um comportamento equivalente ao daquelas pessoas que andam nas ruas a falar sozinhas. Por vezes descubro no que escrevo coisas de que não tinha consciência. Na prosa é um pouco diferente. Escrevi imensas crónicas para os jornais e tenho desenvolvido alguns ensaios, mas tudo isso é condicionado, premeditado, muito racional. Quando me disponho à escrita automática já o fluir se torna livre, e dessa liberdade, por paradoxal que pareça, saio afectado, por mais que devesse ser, como na poesia, uma terapia da alma.
Achas que há leitores de poesia ou só os poetas se lêem entre si?
Por vezes, é isso mesmo que me parece. Se aceitarmos o que nos diz a Psicologia, que o gosto é um hábito, não podemos estranhar a pouca apetência dos leitores para a poesia, não estão habituados. A sociedade tem vindo a desenvolver-se no sentido do pragmatismo, não da sensibilidade. No espírito como nos terrenos agrícolas só nasce e cresce aquilo que se planta. Talvez os poetas se leiam uns aos outros, havendo um número pequeno de poetas que não escrevem, mas lêem.
Que opinas sobre as redes sociais como difusoras de arte, recitais etc.?
As redes sociais são uma faca de dois gumes, mas o gume mais afiado é o da boçalidade. E é por isso mesmo que tudo o que é decente e progressivo deve tentar ocupar o maior espaço possível. Esta forma de conexão global é uma ferramenta extraordinária. Parece-me o embrião de uma mente colectiva material e concreta. De momento é o forno onde se cozem as más ideias que fomentam os novos títeres sem alma nem princípios. Essa é a arte por ora predominante. Os recitais podem, sim, ser formas de criar ilhas de resistência.
O teu poema nasce de súpeto, como algo que golpeia e sai de uma maneira explosiva e rápida ou é um processo mais pausado e longo?
Às vezes é um instante e sai completo, outras vezes um pequeno apontamento que se vai desenvolvendo sem tempo definido, outras ainda, coisa que se escreve e reescreve. Não são raras as vezes em que um pequeno esboço fica perdido entre papéis caóticos à espera de achamento.
Este livro, A razão das palavras cortadas muito rentes (ou algumas heresias), como surgiu?
Surgiu de um cruzamento de vários projectos, que tenho apenas alinhavados, que andei a garimpar, tendo em mente uma frase muito conhecida do Drummond de Andrade: escrever é cortar palavras. É evidente que a proposta não é escrever-se em monossílabos, mas dizer o máximo com o mínimo de palavras, tenham elas as sílabas que tiverem. Um pouco em aparente forma de haiku, que de forma alguma quer ser. Apenas quis cortar palavras, mas só o leitor saberá se o intento foi conseguido e, em caso afirmativo, qual o jeito e o interesse.
Qual é o teu verso favorito do livro (transcreve-lo, por favor)? Poderias explicar o porque ele é o teu verso favorito?
«O ovo é um universo encerrado numa casca. Que saberá a gema dos mistérios para lá da brancura que a limita?» Todos os indivíduos, todas as coisas são de por si um universo limitado pela forma que os individualiza. Por um processo de consciência que a vida comporta, há quem se descubra total e único. Mas porque a consciência cresce pela interrogação, ao interrogar-se sobre o mistério para lá dos limites percebe que o limite é uma forma de o todo se restringir à forma. Quando a gema se faz pinto, este rompe a casca. Toda a evolução é um processo de interrogar qual o mistério para além da casca, de todas e das sucessivas cascas.
Como conheceste a editora Urutau?
Foi através da NET. A Editora pedia manuscritos de autores portugueses para apreciação e eu remeti Arpejos em Violeta, publicado em 2017
Alguma observação que queiras acrescentar?
Acho enorme a coragem da editora Urutau, dedicada à poesia, neste tempo de utilidades várias, tão pouco poético. O que eu mais desejaria era que ela pudesse ser um vírus, mas os anticorpos do pragmatismo dificultam muito a infecção.
Abdul Cadre
Poeta, ensaísta e orador de temas esotéricos, nasceu em Portugal, viveu em África e reside no Alentejo.
Nascido em Portugal, em 9 de Outubro de 1941, Abdul Cadre é o nome literário que o poeta, escritor e ensaísta inventou para si próprio enquanto deambulava pelos cacimbos africanos.
Frequentou a Faculdade de Direito de Lisboa, cujo curso não acabou. Tem colaboração dispersa por jornais e revistas de vários países, nomeadamente Espanha, França, Itália e Brasil e mais de duzentas distinções em certames literários, de que se destaca «Lauro D’Oro», 1985, no XX World Literature and Art Selection da Accademia Internazionale di «Pontzen» di Lettere, Scienze ed Arti (Nápoles), academia que também lhe conferiu o grau de «Accademico di Merito»; Certificado de «Excelence in Poetry », da International Writers Association (EUA, 1987; «Palmas Académicas» de mérito literário, conferidas em 1988 pela atrás referida Academia de Nápoles.
Fundou e dirigiu duas associações literárias — NERP e ARTLE — e foi editor de várias publicações. É conferencista de temas literários, esotéricos e rosacrucianos. Tem colaborado como freelancer em vários jornais regionais portugueses.
Foi correspondente em Nampula dos jornais Voz Africana e Diário de Moçambique, e, em Portugal, director adjunto de O Almadense. Cronista regular durante vários anos dos jornais Voz do Barreiro e Jornal do Barreiro, tem actualmente menos actividade em jornais e mais em revistas temáticas, bem como publicações na Internet.
Tem vinte e dois livros publicados em nome individual e vários trabalhos inseridos em antologias de prosa e verso.