“Escrevo de dentro da emergência. Escrevo de dentro do país. Escrevo tomando posição” — entrevista com Francisco Mallmann

editora Urutau
8 min readMay 6, 2020

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A 40ª de uma série de entrevistas com as/os poetas da editora Urutau

por Silvia Penas Estévez & nósOnça

Francisco Mallmann (Curitiba, 1993)

O que é poesia para você?

Não sei o que é a poesia, assim, em definitivo — mas tento sempre pensar no que ela pode ser, transitoriamente. Acho que as definições me assustam menos quando são contextuais — para que possam, desse modo, se confundir com a vida. A poesia tem sido, para mim, uma maneira de enfrentar o mundo, criar comunidades (im)possíveis, me irmanar ao que me soa urgente, criar corpo, formular gênero. Como leitor, ela tem sido um convite a insistência, um lembrete para redobrar os esforços, para não achar que estão esgotados os gestos. Como criador, ela tem me ensinado a torcer o olhar, a usar as mãos, a enganar as impossibilidades, a me implicar naquilo que me parece inescapável, mesmo que pelas bordas, pelo avesso. A poesia como energia vital: é importante fazer a manutenção, mesmo quando não brilha tão forte. Até mesmo essa distinção que eu uso para responder, leitor/criador, acho que a poesia subverte. Não acho que essas ações estejam dissociadas, porque não acho que nossas criações se separam dos nossos outros exercícios.

Quando escreve, pensa em interlocutores? Sua escrita lhe afeta?

Eu penso em interlocutoras, sim. Diferentes interlocutoras. Penso, vez ou outra, em uma multidão dissidente — às vezes as pessoas têm rosto, às vezes não. Às vezes nome, às vezes não. Penso em reuniões de gentes estranhas, que integram minhas projeções de coletividade. Penso em transtemporalidades, irmãs que perdi na história e reencontro na escrita — eu sei que foram elas que me desejaram, me sonharam. Também penso em gente que conheço, que amo e detesto. Escrevo, às vezes, de maneira endereçada — para, logo depois, perder completamente as noções de destino. Falo muito em voz alta, leio em voz alta, performo o que escrevo, sozinho ou acompanhado. Quebro o silêncio que, penso, também é um interlocutor. Acho que minha criação me afeta quando vislumbro nela o convite à diminuição das distâncias: a colisão, o esbarrão, o choque, a batida, o encontro, a queda, isso tudo me faz vibrar. Quando os corpos se encontram. Acho que na minha escrita, inevitavelmente, é também central a minha formação teatral que é, antes de tudo, coletiva — a minha poesia se confunde muito com a minha dramaturgia: uma palavra-processual, que se testa em sala de ensaio, que se dá tempo e espaço ao erro e ao fracasso. Uma palavra-muscular, que é corpo, sempre corpo. Eu uso muito a noção de “ensaio” para escrever.

Quais são os/as poetas da atualidade/vivos/vivas que mais lhe tocam nesse momento?

São muitas as poetas que me tocam, atualmente. Especialmente mulheres, lgbtqi+, criadoras racializadas, ditas periféricas, não normativas nos seus modos de viver&criar. Mas há próximo a mim — e acho essa uma maneira mais honesta de responder a essa questão — uma grupa de escritoras, da qual eu também faço parte, chamada Membrana. É um coletivo que se encontra para se ler, se ouvir, se criticar. Nós formamos o que chamamos, juntas, de uma rede crítica-afetiva. Tem sido uma maneira de trabalhar (n)a escrita de modo sério e engajado, enquanto também vivemos juntas. E isso é muito importante, uma vida partilhada e o modo como a escrita atravessa, integra, compõe, permite e avoluma nossas existências, individuais e coletivas. É um ajuntamento composto, majoritariamente, por mulheres e artistas interdisciplinares que escrevem. Atualmente a Membrana é Cali Ossani, Caetano Gisi, Daniele Cristyne, Francisco Mallmann, Ísis Odara, Jessica Stori, Julia Raiz, Luciano Faccini, Mariana Marino, Nanna Ajzental, Natasha Tinet, Ricardo Nolasco, Semy Monastier, Thalita Sejanes e Yasmin Pschera. Essas pessoas me tocam — elas, literalmente, me tocam.

O que você opina sobre as redes sociais como difusoras de arte? Colaboram de certa forma para a existência da poesia?

Gosto muito das redes socias. E também gosto muito de esquecer delas. Acho que é um espaço — virtual, que seja — possível para fazer os trabalhos circularem. Não gosto dos discursos puristas que tentam diminuir ou deslegitimar as criações que estão nas redes. Tampouco gosto de tudo que vejo por aqui — como não gosto de muita coisa que vejo em outros lugares. Procuro me afastar das discussões e dos circuitos que, de algum modo, querem indicar ou produzir moralidade, normas ou princípios para a criação — sua distribuição ou circulação. As redes sociais me permitiram, por exemplo, movimentos de independência com meu próprio trabalho e também a conexão com artistas de outros lugares — no Brasil e fora dele. Muitas coisas preciosas estão na internet, acho importante estarmos atentas ao que acontece aqui — isso altera a ordem vigente, isso desestabiliza o cânone, isso produz outros circuitos, feitos de outras presenças. Me interesso, especialmente, pelo potencial insurgente que as redes sociais têm: a possibilidade de, por exemplo, artistas social e historicamente alheios aos circutos normativos, terem suas vozes, criações e corpos (auto)publicados e ampliados. Esse, entre tantos outros, me parece um fenômeno importante e incontornável. Muitas coisas sérias acontecem por aqui, menosprezar esse poder é, no mínimo, uma desatenção autocentrada.

Nos últimos anos tivemos uma série de acontecimentos no Brasil (do fim da era Lula à ascensão da extrema direita) e também uma maior visibilidade aos movimentos de lutas sociais (feminista, LGBTQIA+, indígena, quilombola, anti-racistas…) — isso reverbera na sua criação literária?

Isso reverbera na minha própria existência, nas coisas a que me dedico em todos âmbitos da minha vida. Não poderia ser diferente com a criação em poesia. Alguns trabalhos têm um teor diretamente político — em uma perspectiva institucional — mas entendo toda a minha criação como uma maneira de fazer política. Eu sou uma bicha que escreve, que pesquisa, que pensa, age e trabalha em coletivo, entre tantas coisas, contra a nossa sociabilidade colonial. Faço isso hoje, agora, aqui. Desconfio de quem acha que o trabalho está fora — do tempo, da geografia, do corpo. Escrevo de dentro da emergência. Escrevo de dentro do país. Escrevo tomando posição.

O seu poema nasce de súpeto, como algo que golpeia e sai de uma maneira explosiva e rápida ou é um processo mais pausado e longo?

Tenho diferentes modos de escrever. Escrevo diariamente, anoto tudo o que me parece uma boa ideia. Sustento algumas e trabalho demoradamente por sobre, outras deixo descansar — às vezes para descobrir que são ruins, às vezes para renovar o que me pareceu potente. De todo modo, tenho aprendido a respeitar os ímpetos inaugurais. Tenho mania de reescrever compulsivamente. Tem sido importante deixar que os primeiros rabiscos permaneçam visíveis. É um modo de respeitar a criação. Quando escrevo dramaturgia, gosto de fazer isso processualmente, olhando muito para todas as artistas envolvidas no projeto, permitindo que a palavra circule por bastante tempo entre nós. Na poesia, especificamente, uma certa coloquialidade me seduz — trabalho com essa espécie de espontaneidade, busco por ela. E uso muito da repetição, vários desses pequenos enunciados que se repetem nos meus poemas me surgiram como em um susto. Um susto que eu precisaria enfrentar. Escrever poesia, para mim, atualmente, é não fugir do susto.

Haverá festa com o que restar (editora Urutau, 2018)

O seu livro, “Haverá festa com o que restar”, como ele surgiu?

A fronteira — a ideia, a fisicalidade — sempre me acompanhou. As noções de identidade, a suas importâncias, as suas insuficiências, os seus limites, também. Nessa obra, tenho a impressão de que o terreno, a língua, os corpos, são híbridos — produzem existência com os restos. haverá festa com o que restar é um livro em que eu intersecciono uma vivência bicha terceiro-mundista, colonizada, com inscrições de enfrentamento a uma normatividade assassina. O livro é um projeto, uma dramaturgia em cinco partes, um memorial que percorre um trecho de vida recortada. Ele reúne materiais realizados de 2016 a 2018, ano em que o livro foi publicado. É uma promessa de festa que, para mim, questiona inclusive a própria noção de festividade. Acho bonito quando Paco Vidarte chama o Ética Marica de um “interruptor”, capaz de fazer ligar ou desligar quem o lê. Enquanto eu escrevia o haverá festa eu pensava muito em “implosão” — acho que ele surgiu assim: um programa performativo para ser publicado, cujos materiais são o tencionamento de tudo o que eu achava que eu era, em uma paisagem que eu achava que conhecia. Eu queria saber o que resta depois de uma (auto)detonação, me lancei à essa busca. Queria saber o que faríamos depois. Quais ações, contra o que, junto de quem. Eu escrevia e me perguntava como fazer a manutenção da vida — não a vida reprodutiva, hetero e cis compulsória, biologicista, mas das nossas vidas, que são vidas que escapam. Eu queria saber como é que, há tanto tempo, conseguimos permanecer vivas, mesmo quando tudo nos quer mortas. haverá festa é sobre nossa comunidade de sobreviventes — e tento questionar quem é esse “nós”, precário, passageiro, transitivo.

Qual é o seu verso favorito do livro? Há alguma explicação?

Hoje gosto muito de “meu corpo também guarda o gesto contrário”. É um verso que me faz lembrar de respeitar a sabedoria da encruzilhada. Também me faz recordar que eu sou contraditório, e que uma das coisas que mais admiro em alguém é o potencial incapturável.

Como você conheceu a editora Urutau?

Quem primeiro me apresentou a Urutau foi a Julia Raiz. O primeiro livro que li da editora foi o da Maria Isabel Iorio “Em que pensaria quando estivesse fugindo”.

Alguma observação que queira acrescentar?

O que há de ingênuo em mim quer acreditar que não perderemos a oportunidade de mudar radicalmente. Me interesso pelas narrativas do “fim do mundo”, em uma perspectiva decolonial. Eu acredito na ruína de um mundo capitalístico, necropolítico. Eu acredito na falência desse modo de vida predatório e acumulador. Tenho sonhado, ainda assim. E tenho coletado sonhos de pessoas que eu amo. Quais imagens e narrativas criaremos, nós, a partir daqui. Vamos ver.

Francisco Mallmann

graduou-se em Artes Cênicas e Jornalismo. É mestre em Filosofia e artista residente da Casa Selvática. Cria na intersecção entre poesia, dramaturgia, artes visuais e crítica de arte. Publicou haverá festa com o que restar (Urutau, 2018, finalista dos prêmios Rio de Literatura e Mix Literário, vencedor do prêmio da Biblioteca Nacional, 3º lugar na categoria poesia) e língua pele áspera (megamini, 7Letras, 2019).

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