“eu sempre escrevi na presença de um eu imaginário” entrevista com Lena Yunis

editora Urutau
7 min readSep 10, 2020

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99ª de uma série de entrevistas com as/os poetas da editora Urutau

por Silvia Penas Estévez & nósOnça

Lena Yunis (San Carlos de Bariloche, Argentina,1976)

O que é poesia para você?

Pra mim a poesia é a nascente do belo, a matriz de toda linguagem artística

Quando escreve, pensa em interlocutores? Sua escrita lhe afeta?

Sim, eu gosto de uma consideração do Edward Said que diz que a gente deveria escrever sempre na presença imaginária do outro. Ele está pensando em evitar estereótipos e violência simbólica na alteridade cultural, mas eu sempre escrevi na presença de um eu imaginário e de outros também que nem sempre eram destinatários ou interlocutores diretos…às vezes inclusive nem sempre eram reais, ou não sei se podemos considerar reais ou não seres como as fadas, por exemplo (eu tenho uma sensação a respeito, mas não posso afirmar em definitivo). Eu penso também se uma criança pode ler algo do que escrevo e ter entendimento ou proveito estético ou como usar a linguagem metafórica de maneira mais abrangente, mesmo quando o tema é pessoal. Eu estou sempre na presença imaginária de outros reais e abstratos.

Quanto à escrita me afetar, depois de um tempo que eu leio eu me vejo em duplo: eu hoje, eu ontem e a experiência de fundo, transformada numa nova experiência poética. Depois que eu publiquei eu também fiquei tocada com a ideia de que as experiências que deram origem aos meus escritos não ficariam mortas no vácuo do tempo, mas iriam viver transformadas, transmutadas em palavras que ainda iriam ganhar sentidos outros dentro dos leitores/ouvintes.

Quais são os/as poetas da atualidade/vivos/vivas que mais lhe tocam nesse momento?

Eu não leio poesia atual… quase nunca. Ainda estou em formação com os antigos e os clássicos (mesmo os clássicos modernos). A última poesia que li foi “Ele que o abismo viu: Epopeia de Gilgamesh” na tradução do Jacyntho Lins Brandão e agora ando lendo textos bíblicos na tradução dos monges belgas, que é bem poética, aliás. Só quando algum colega me manda algo eu leio, claro, ou acompanho nas redes sociais quando postam seus poemas — Angela Grillo, uma amiga; Fernando Fernandes, um colega; uma escritora chamada Ciça que organiza o sarau Revoada — e eu achei o que eles escreveram bonito. Mas acho que meu negócio é mais ouvir os mortos: coisa de historiadora, será?

O que você opina sobre as redes sociais como difusoras de arte? Colaboram de certa forma para a existência da poesia?

Então, se eu responder sem pensar, talvez diga que não gosto. Acho a virtualidade uma coisa esquisita, diferente, mas funciona às vezes, já vi muita coisa bonita circulando. Eu prefiro a sinergia do presencial mas tenho fases muito antisociais, então nessas horas é reconfortante a gente se deparar com uma foto, um texto, um vídeo. Eu as vezes posto qualquer coisa; é raro, mas posto e gosto da interação, desperta algo bom nas pessoas, eu acho, essa sensibilidade para o belo, para a transfiguração criativa do real.

Nos últimos anos tivemos uma série de acontecimentos no Brasil (do fim da era Lula à ascensão da extrema direita) e também uma maior visibilidade aos movimentos de lutas sociais (feminista, LGBTQIA+, indígena, quilombola, anti-racistas…) — isso reverbera na sua criação literária?

Na verdade eu nunca escrevi para publicar, eu publiquei por acaso, então entre meus outros imaginários nunca tinha assim, sociedade, grupos etc. A não ser quando eu tinha algum sonho, algum lance com ancestralidade, com os mapuches, por exemplo, que são um povo indígena da América do Sul e eu nasci por lá e fui amamentada por uma mapuche, então acabo reverenciando; mas não é uma questão para mim escrever por ou para um setor ou outro da sociedade. Eu me senti até um pouco desafiada nos últimos tempos, mas não tenho coisas publicadas — antes eu escrevia in progress num blog meu, mas resolvi retirar porque fica poluído e é melhor publicar o resultado final; e agora estou na concha, no silêncio. De qualquer forma a escrita para mim nasce de uma necessidade de simbolização de processos particulares que às vezes tangenciam, é claro, o coletivo, mas eu não escrevo de forma engajada. Muitas vezes tem a ver com uma reflexão mística, um quadro, uma lembrança, uma imagem que catalisa algo dentro de mim, não necessariamente sentimento ou algo relacionado a pessoas e situações individuais ou sociais. O lance é que às vezes você registra algo íntimo que ganha outra dimensão para o leitor porque ele não acessa o seu universo pessoal né, e isso é interessante. Então você lê num conto poético/crônica minha de 2013 algo do tipo “estou agora no Planalto Central e todos mentem para mim” e claro que ao escrever eu notei o duplo sentido disso, mas o sentido primeiro dessa frase não era político. Isso hoje pode até ser interpretado como sendo literal, quando na verdade não o era originalmente e eu acho que tudo bem, porque creio que a poesia é muito mais interativa do que autoral. Eu me interesso muito por essa magia meio oracular do poético.

O seu poema nasce de súpeto, como algo que golpeia e sai de uma maneira explosiva e rápida ou é um processo mais pausado e longo?

Achei engraçada a pergunta. Eu sei lá. Eu escrevo bem pouco. Às vezes um poema vem quase inteiro, de madrugada. Em dois três dias eu dou uma lapidada e pronto. Mas outro dia eu desengavetei uns exercícios de poesia da época da escola e resolvi torná-los mais interessantes, mais úteis, fiquei brincando, fiquei mexendo; me deram trabalho encostei de novo, depois volto neles. Pra mim poesia é jogo lúdico, então eu pergunto, quanto tempo dura um jogo, uma brincadeira? Pode ser um segundo; pode durar anos.

O seu livro, O círculo de fogo, como ele surgiu?

Eu precisava de publicação para engordar o meu currículo Lattes e tentar uma bolsa de pesquisa, então vi um dia a chamada da Urutau para poesia, não lembro se no facebook, aí entrei por curiosidade e resolvi mandar meus poemas. Eu pensei: vamos ver se isso aqui presta, se é publicável. Eu estava mais que tudo curiosa para saber o que um editor que eu nunca vi na vida poderia achar dos meus registros simbólicos-poéticos-mágicos, nem sei como definir. Eu fiquei feliz da vida quando veio a aprovação! Não tinha um puto no bolso, estava numa fase triste, mas veio como um presente para eu ver que tinha feito algo de valor na vida. Fiquei feliz mesmo. A capa ficou incrível, em sintonia completa com o livro; a capa aberta pra mim é um poema visual. E teve outra coisa interessante também, foi a primeira vez que fiz uma parceria com um completo desconhecido: o revisor. Ele estava me ajudando com uns versos em inglês e acabou recriando, pedi para ele assinar junto o poema. Muito legal, nunca nos vimos na vida! Por fim, adivinhe: eu descobri que a publicação não tinha valor nenhum para o CV, mas foi uma das surpresas mais gratas que tive na vida.

Qual é o seu verso favorito do livro? Há alguma explicação?

Não tenho um verso favorito, mas um provérbio de que gosto é: “O arco atira a flecha o alvo foi-se”. Acho que quem disse isso foi Lao Tsé, meu pai me contou enquanto falávamos da linguagem. Uma vez disparada (a palavra) não tem volta e também quase nunca chega no alvo, o que acho que reflete principalmente a ironia da linguagem escrita. Li em algum lugar que os antigos celtas tinham aversão à escrita porque ela distorcia e fixava a realidade numa interpretação que depois tinha um efeito refratário degenerativo e até mortal sobre o próprio Real; e também que eles gostavam muito de guardar fórmulas poéticas, gestas, essa coisa das culturas orais, acho que porque o poético é talvez a única forma de linguagem orgânica que não fere a natureza. Eu acho bonito isso, não sei se é mesmo celta, mas é uma ideia com a qual concordo.

Como você conheceu a editora Urutau?

Na chamada, como contei antes.

Alguma observação que queira acrescentar?

Sim, eu queria acrescentar que o livro foi publicado com um pequeno mas importante erro de revisão, eu mesma comi bola na revisão da revisão e passou batido, que é o título do poema “Malinche” (na primeira e até agora única edição está Maliche, sem o n). Esse detalhe é importante porque é o nome da tradutora-inteŕprete de Montezuma que depois se casou com Hernán Cortez, o invasor espanhol, na época da conquista da América. Um detalhe que muda tudo na leitura do poema, que está escrito em portunhol e faz essa referência histórica e linguística que eu gostaria que o leitor tivesse; então perdão, e na próxima edição a gente conserta. Paz a todos, obrigada, um abraço.

Lena Yunis

nasceu em 1976, em San Carlos de Bariloche, Argentina. Viveu também em Buenos Aires e veio ainda pequena para o Brasil. Passou a maior parte da infância e juventude no campo e estudou numa escola construída em meio à natureza, onde aprendeu também horta, fitoterapia, teatro, dança, música e estudos holísticos. Cursou o Ensino Médio no Colégio Equipe, onde teve o primeiro contato com técnicas literárias. Formou-se em História na USP e trabalhou com turismo educacional, pesquisa histórica, leitura oracular e comunicação editorial. Dedicou-se por alguns anos ao estudo e docência de danças orientais, à realização de saraus interestéticos e à pesquisa histórica sobre artes e censura no islã. Defendeu mestrado sobre poesia e dança persa e doutorado sobre a tradução poética de Rumi pelo Departamento de Letras Orientais da USP — área de Estudos Árabes, com o apoio da CAPES, tendo sido a única pesquisadora latino-americana a integrar os participantes do Symposia Iranica (Cambridge/UK) em 2017. Dedica-se, entre outras coisas, à difusão, ensino e tradução da literatura persa, culturas nômades e história das artes performáticas no islã. Publica de forma independente no seu blog pessoal leludens.blogspot.com e gosta de arquearia, literatura estrangeira variada, cosmologias antigas, contato com a natureza e viagens.

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