“gosto de pensar na poesia como revelação do real, das coisas por detrás das coisas” — entrevista com Anna Clara de Vitto
A 77ª de uma série de entrevistas com as/os poetas da editora Urutau
por Silvia Penas Estévez & nósOnça
O que é poesia para você?
Para além da questão de linguagem, em que o fazer poético seria o grau máximo de tensionamento, gosto de pensar na poesia como revelação do real, das coisas por detrás das coisas, algo como um antiálbum de fotografia, que exige a desdomestição do olhar para que a revelação aconteça.
Quando escreve, pensa em interlocutores? Sua escrita lhe afeta?
Considero que minha poesia nasce da afetação com o mundo, então, acaba sendo um ciclo: o mundo me toca, a escrita decorrente desse toque deseja tocar outras paragens, outras pessoas, outras realidades. Acho que a mágica da poesia acontece quando encontra outros olhares, para além do olhar criador. Então, sim, escrevo com essa interlocução em mente o tempo todo.
Quais são os/as poetas da atualidade/vivos/vivas que mais lhe tocam nesse momento?
Correndo o risco de deixar muita gente maravilhosa de fora, tem me acompanhado a poesia de Jarid Arraes, Pilar Bu, Camila Assad, Ana Beatriz Domingues, Lubi Prates, Cecilia Pavón, Conceição Evaristo, Ana Martins Marques, Mell Renault, Tatiana Pequeno, Ana Guadalupe, Carla Kinzo, Amanda Vital, Angélica Freitas, Natália Agra, Viviane Nogueira, Maitê Alegretti, Caroline Policarpo Veloso, Carolina Braga Ferreira, Laura Navarro, Adelaide Ivánova, Filipa Leal, Lívia Natália, Tatiana Nascimento, Mercedes Araujo, Natasha Felix, Layla Loli, Júlia Batista, Ana Rüsche, Andrea Azevedo, Katia Marchese, Calí Boreaz, Carol Sanches, Débora Mitrano, Bruna Mitrano e Alejandra Correa. Sim, são muitas, mas, com certeza, estou esquecendo de outras poetas contemporâneas maravilhosas! Nesses momentos, me sinto feliz de estar viva e dividir estes tempos com elas.
O que você opina sobre as redes sociais como difusoras de arte? Colaboram de certa forma para a existência da poesia?
Penso que as redes sociais, quando bem utilizadas, colaboram muito com o acesso à arte. No campo da poesia, as plataformas intensificam o diálogo entre poetas vivos, o que acho fabuloso. É gratificante ter por perto artistas que admiramos, poder se inspirar na produção deles, construir coletivamente a poesia contemporânea. Creio que, nesse sentido, vivemos um momento histórico, diante da diversidade inédita de vozes na poesia. E as redes contribuem para a visibilidade dessa pluralidade.
Nos últimos anos tivemos uma série de acontecimentos no Brasil (do fim da era Lula à ascensão da extrema direita) e também uma maior visibilidade aos movimentos de lutas sociais (feminista, LGBTQIA+, indígena, quilombola, anti-racistas…) — isso reverbera na sua criação literária?
Com absoluta certeza. Como especificarei mais adiante, ao falar do processo do meu primeiro livro, o entendimento de que eu sou escritora veio em meio ao contato com o feminismo. Assim, a minha escrita possui uma forte orientação coletiva, um caminhar de mãos dadas com quem sempre teve a voz calada. Diria que esse é o verdadeiro farol da poesia que crio.
O seu poema nasce de súpeto, como algo que golpeia e sai de uma maneira explosiva e rápida ou é um processo mais pausado e longo?
A faísca inicial para o poema costuma vir subitamente, não raro, quando estou muito imersa em algum tema. Mas o trabalho com as imagens poéticas geralmente demanda mais tempo, para que eu possa lapidá-las. Costumo dizer que o poema é que decide quando está pronto, cabe a mim, artífice da palavra, ouvi-lo e respeitá-lo (nesse momento, sorrio).
O seu livro, Água indócil, como ele surgiu?
Água indócil surgiu de um longo processo de vida. Desde muito cedo, amava escrever, mas nunca fui estimulada a levar a literatura a sério, como ofício. Então, também pela falta de exemplos a seguir, guardava toda minha produção como algo de pouco ou nenhum valor. Isso mudou radicalmente em 2016, quando comecei a frequentar o Clube da Escrita para Mulheres, fundado no ano anterior pela escritora, cordelista e poeta Jarid Arraes. Ali, naquele espaço seguro e transformador, entendi que eu também era escritora e, sobretudo, que eu podia escrever como uma mulher, que isso não significava uma falta ou um defeito, que a minha voz e as minhas histórias de mulher eram dignas de ser contadas e lidas. Mais, que eu precisava contá-las, por mim e por outras mulheres, especialmente. Daí vem a tônica de libertação do livro, o fio que orienta a coesão da obra. A partir dessa descoberta, comecei a frequentar diversos cursos e oficinas de escrita, sobretudo de poesia. No caminho, trouxe à luz os poemas que faltavam para completar a unidade que comecei a idealizar muito antes de me assumir escritora. É curioso pensar que alguns dos poemas da Água indócil foram escritos em 2009, dez anos antes do lançamento!
Qual é o seu verso favorito do livro? Há alguma explicação?
Há muitos versos que me são especiais na Água indócil, mas a última estrofe do último poema, chamado “atenciosamente”, além de ser uma grata e emocionada homenagem a Hilda Hilst, é a mensagem que gostaria de transmitir sobre a eu-lírica da obra, sobre as mulheres que escrevem, sobre a própria poesia: “sou medusa vitoriosa/se não te pareço monstro,/olha-me de novo/mais sóbrio”. Olhem bem, olhem de novo, nunca é o que parece!
Como você conheceu a editora Urutau?
Lendo poetas editados por vocês! Foi uma alegria indescritível receber a notícia de que eu tinha sido selecionada em uma das chamadas para a cidade de São Paulo!
Alguma observação que queira acrescentar?
Leiam mulheres, destruam o racismo, o fascismo, a misoginia! E que nunca falte poesia e indocilidade em cada coração! Evoé!
Anna Clara de Vitto
é poeta e autora de Água indócil (Urutau, 2019) e MEADA (ed. da autora, 2019). Desde 2017, integra a coordenação do Clube da Escrita para Mulheres, fundado pela escritora, cordelista e poeta Jarid Arraes. Possui poemas publicados nas revistas Ruído Manifesto, Germina Literatura, Plural, Fazia Poesia, Literatura e Fechadura, Escrita Droide, entre outras. Além das publicações esparsas, participa de saraus, performances poéticas, oficinas, leituras e mesas de debate.