“Linguagem que é nudez maior do que a pele” — entrevista com Maria Giulia Pinheiro

editora Urutau
5 min readApr 16, 2020

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A 20ª de uma série de entrevistas com as/os poetas da editora Urutau.

por Silvia Penas Estévez

Maria Giulia Pinheiro (São Paulo, 1990)

A poesia é uma forma de ver o mundo?

A poesia é uma forma de encontrar o mundo, mais do que ver, como uma bússola. Como um norte na procura incessante pela Beleza. Sinto que estar viva é uma procura pelo tempo, pelo instante, pelo presente, pelo cheiro das coisas, pela cor das coisas. E por transmitir isso aos outros. Encontrar uma flor no meio do caminho e entender que é uma metonímia para todas as flores em todos os caminhos. E que, ainda assim, esta será vermelha, aquela outra será pisada. Penso que a poesia é o que difere sobre qual das duas falaremos e como. Assim, é uma procura pela vida e pela forma da vida.

(Acho que esta é uma questão para se pensar a vida toda e para responder de forma diferente a cada momento.)

Quando escreves, pensas em alguma leitora/leitor imaginária/o? Se vês afectado por aquilo que escreves?

Sempre que penso antes em uma leitora ou leitor imaginária/o, sinto que o texto ganha muito. Mas não é sempre que penso. Acredito que quão mais definido for o seu alvo, melhor é atirada a flecha. Mas não é fácil fazê-lo, decidir com quem quer falar. Escrevi um livro chamado “Alteridade” que narra um abuso e o caminho pelo qual uma mulher abusada passou. O texto patinou muito antes de encontrar o corpo que eu queria para ele. E isso só aconteceu quando percebi que textos/cenas/filmes/peças sobre estupro já existiram muitos. E que, em quase todos, assim como na vida, quando mulheres assistiam, elas viravam os rosto de aflição. Já os homens, seguiam encarando de frente. Queria escrever algo que as mulheres olhassem nos olhos e que fosse aflitivo aos homens. Isso mudou tudo no texto e na minha percepção de diálogo.

Tudo o que escrevo me modifica. Digo isso quase que infelizmente. Queria muito ser mais sábia do que as coisas que escrevo, mas elas são todas mais espertas que eu e devo muito a elas. (às vezes acho que escrever é uma conversa com Deus(a) e que não passa pela nossa cabeça, vai direto do peito pra mão.)

Achas que há leitores de poesia ou só os poetas se lêem entre si?

Há leitores. Mas eles são poucos. E se escondem. E isso é culpa dos próprios poetas, que se colocam como uma casta superior. E, por isso, vejo uma importância gigantesca no movimento de poetry slam. Em mostrar que a poesia é uma forma de existir no mundo, de percepção da realidade e que não deve ficar restrita a meia dúzia de pessoas com diplomas e livros empoeirado. A poesia é rua, é uma forma de expressão que abre as possibilidades de percepção do mundo. Parafraseando o Augusto Boal, todos podem fazer poesia, até os poetas. É muito importante que tenhamos esta dimensão de que uma poesia só lida por poucos não é melhor do que uma poesia popular, só porque esses poucos se pensam melhores. É preciso expandir os conceitos de poesia. Entender a palavra falada na sua amplitude e poder.

Que opinas sobre as redes sociais como difusoras de arte, recitais etc.?

Sou totalmente contra e, ainda assim, uso todos os dias para isso. Penso ser um perigo nos colocarmos sempre intermediados por telas, por redes sociais, por posts. Ainda assim, é o mundo como é hoje. Tem sua importância como parte do que vivemos, não dá para negar isso e viver recluso. Tento fazer o maior número de eventos presenciais possível, tento estar junto, tenho um apreço gigantesco pelo livro em papel. Mas, se agora o que temos é telas, é nelas que devemos estar também. E devemos nos apropriar dos meios de produção virtual, aprender a fazer, a gerir, a difundir. É uma ferramenta e está disponível, então temos que utilizar.

O teu poema nasce de súpeto, como algo que golpeia e sai de uma maneira explosiva e rápida ou é um processo mais pausado e longo?

É uma tosse. Ele nasce sozinho, me invade e eu preciso colocar para fora. Raríssimo eu passar muito tempo convivendo com um poema.

Odeio os seus cigarros (a Ana C.), Maria Giulia Pinheiro. Avessamento (Urutau, 2017)

Este livro, Avessamento, como surgiu?

É uma pergunta difícil. Eu escrevo sempre e vou acumulando. Uma hora, algo parece se juntar com algo e fazer sentido um poema ao lado do outro. Já tinha escrito alguns poemas do livro, quando fraturei quatro costelas de tanto tossir durante uma pneumonia. Tive que ficar em repouso absoluto e comecei a pensar neste movimento de me quebrar de dentro pra fora, como um ovo. Algo de dentro tão vivo, tão forte, que precisava sair. Como se meu avesso quisesse vir a tona. E então pensei nos meus avessos e comecei a criar poemas e intervenções nos meus exames pensando em avessos. No livro, vou me transformando em coisas repugnantes. Penso que minhas entranhas são repugnantes. E são políticas.

Qual é o teu verso favorito do livro (transcreve-lo, por favor)? Poderias explicar o porque ele é o teu verso favorito?

Penso ser “Linguagem que é nudez maior do que a pele.

Este primeiro poema do livro é o meu favorito, quase como um manifesto. Gosto deste verso por pensar que a hipocrisia dos corpos morais que vivemos não sobrevive a poesia. A poesia é uma arma de desconstrução da moral.

E isso me faz me sentir livre.

Como conheceste a Editora Urutau?

Em uma audição de um disco! (“Lâmina”, Felipe Antunes) Um amigo me contou sobre a editora, mostrou alguns livros. Eles eram todos tão bonitos…! Conheci o Wlad lá. Fui pra casa e pesquisei os autores. Na hora entendi que era a casa do Avessamento.

Alguma observação que queiras acrescentar?

Sim. Gostaria de agradecer e devolver todas as perguntas a Silvia Penas Estévez. Posso? Seria bom saber as respostas dela também, conversar. Quem sabe mudar de ideia depois de lê-la! (Aqui está a respostas:“De Paraíso lembro que volvín e era xa o futuro” — entrevista con Silvia Penas Estévez)

Maria Giulia Pinheiro

é autora de “Da Poeta ao Inevitável”, publicado em 2013 pela Editora Patuá, e “Alteridade”, publicado pelo Selo do Burro em 2016. É dramaturga dos espetáculos “Mais um Hamlet”, “Alteridade” e “Bruta Flor do Querer”, do qual também assina a direção. É fundadora do grupo Companhia e Fúria, em que atua, dirige e escreve. Formou-se jornalista pela Fundação Cásper Líbero e atriz pelo Teatro Escola Célia Helena; especializou-se em Roteiro para tv na Academia Internacional de Cinema e em “Arte na Educação: teoria e prática” pela ECA/USP. Nasceu em São Paulo, SP, em 28 de maio de 1990.

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