“não entendo a separação entre escrita e vida, (…) o que escrevo pode ser considerado um corpo-texto” — entrevista com Mariana Marino

editora Urutau
8 min readMay 18, 2020

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A 52ª de uma série de entrevistas com as/os poetas da editora Urutau

por Silvia Penas Estévez & nósOnça

Mariana Marino (Lins, 1990)

O que é poesia para você?

Muita gente já definiu o que é poesia, mas eu nunca escolhi uma definição fechada, que fizesse sentido para mim, sinceramente. A meu ver, esse conceito não é fixo, não pode ser. Se pensarmos que existem muitas formas de se escrever poesia, muitos corpos que pensam a poesia, há que então entendermos que ela não é um fim (ou um meio) único. Se há, textualmente falando, a presença de diversos centros temáticos que compõem a pluralidade da poesia, como num pluralismo multicêntrico, penso que ela pode ser, portanto, um grande encontro (daqueles imprevisíveis ou com hora marcada para acontecer): entre diferentes corpos, naturezas, sensibilidades, identidades, dinâmicas de (se) entender (n)o mundo.

Quando escreve, pensa em interlocutores? Sua escrita lhe afeta?

Sim, penso, especialmente, em manter diálogo com interlocutoras. Essa vontade de escrever parte muito de memórias reais e inventadas, de passado e de presente-futuro, que tento estabelecer com as mulheres da minha família. Uma vez, minha mãe afirmou que não se considerava uma mulher inteligente. Eu fiquei extremamente aturdida com essa informação, e comecei a tentar encontrar um motivo que nos leva -mulheres dessa e de outras linhagens — a não estreitarmos as relações com outras mulheres a partir das intelectualidades (coloco no plural porque os saberes são diversos e genuínos em sua pluralidade). Essa é uma força que move a busca pela conversa com narrativas que também são minhas, mas foram iniciadas há tanto tempo que nem podemos mensurar. Além de a ideia de linhagem estar atrelada às histórias de família, também se conecta muito com a vontade de conhecer as inúmeras possibilidades de se entender mulher, principalmente mulher-artista, num país como o Brasil. Essa motivação fica mais ou menos clara no decorrer do trabalho de escrita, que é permeado pelo entrelaçamento com as histórias de antes e de agora, pela força dos encontros e suas potencialidades, e por isso me afeta tanto, visto que, para mim, a escrita é um conjunto de fazeres fragmentários e coletivos, principalmente.

Quais são os/as poetas da atualidade/vivos/vivas que mais lhe tocam nesse momento?

Tenho lido muito nesses tempos de rupturas, o que faz com que a tarefa de eleger pessoas que me tocam (e consequentemente tocam a minha escrita), são muitas, seja um pouco difícil. Trazendo de novo a ideia de que os processos de escrita podem representar encontros, serem motivados pelos encontros, percebo como isso tem pautado o meu escrever, não importa ele qual seja (se poético, acadêmico, ensaístico). Então, escolho poetas que representam esse diálogo que mantenho vivo com as pessoas e comigo mesma: é a partir do ânimo das conversas, da vontade de mais ouvir do que falar, que os nomes de Jussara Salazar, Andréia Carvalho Gavita, Josely Vianna Baptista, Orietta Lozano, Juliana Sphar, Ana Martins Marques, Jessica Stori, Beatriz Regina Guimarães Barboza, Julia Raiz, Natasha Tinet, Priscila Prado, Angélica Freitas, Vinícius Lima, Francisco Mallmann, Yuri Amaury, Thiago Hoshino surgem.

O que você opina sobre as redes sociais como difusoras de arte? Colaboram de certa forma para a existência da poesia?

É recente o meu contato mais expressivo com o uso das redes sociais. Até o ano passado, mais ou menos, eu não as utilizava como forma de pesquisa, com o intuito de entrar em contato com os trabalhos de artistas de forma mais dedicada. Acho que esse afastamento, esse purismo de antes, também acabou me distanciando de outros fazeres/saberes estéticos, então a abertura para as redes sociais me fez ampliar ainda mais as viabilidades dos encontros, me fez construir uma aproximação mais devotada com o que alimenta a vida e a escrita, fiquei mais atenta a lançamentos de livros e publicações coletivas, exposições, peças, performances e à leitura de poemas, ensaios, reflexões sobre continuar fazendo, mesmo nos mais nefastos cenários. Apesar disso, gosto de manter a palavra, a sugestão de leitura, o convite pelo boca-a-boca, pela faísca do olho no olho, (com um dinamismo outro que as redes sociais puderam me mostrar). Já que isso ainda permanece uma realidade distante nesse momento, tenho me abrigado com dedicação exagerada nas redes, buscando construir uma memória de futuro ainda bastante embaçada.

Nos últimos anos tivemos uma série de acontecimentos no Brasil (do fim da era Lula à ascensão da extrema direita) e também uma maior visibilidade aos movimentos de lutas sociais (feminista, LGBTQ+, indígena, quilombola, anti-racistas…) — isso reverbera na sua criação literária?

Não há como não se sentir afetada por tudo o que ocorre no Brasil. Não há, repito: para quem ainda tem um coração, estar ilesa aos projetos de extermínio da pluralidade, sendo ela reverberada, estando ela presente em vozes, corpos, realidades, sexualidades, comportamentos, formas de se entender e ser. Como não entendo a separação entre escrita e vida, já que o que escrevo pode ser considerado um corpo-texto (ou um corpo-livro, como sugere Julia Raiz na orelha de Peito aberto até a garganta), questões de vivência/sobrevivência marcam a forma como vivo, penso e desenvolvo a escrita, em maior ou menor grau, de forma mais ou menos cortante, mais ou menos engajada. A força está aí, na vontade de permanência da multiculturalidade dos discursos, dos saberes e das narrativas que simbolizam a urgência do reconhecimento da pluralidade, e não a sua criminalização, inferiorização, negação. Apesar disso, a propagação a todo custo de um modelo único de comportamento, um dos modus operandi do fascismo, como já tratou Pasolini, mais do que paira no ar, existe nas ações individuais, institucionais, culturais. É disso de que me afasto: não quero e não posso me apoiar em um tipo de modelo que anula a minha e a escrita-existência de tantas pessoas.

O seu poema nasce de súpeto, como algo que golpeia e sai de uma maneira explosiva e rápida ou é um processo mais pausado e longo?

Isso varia bastante. Esses ritmos são muito ditados pelo momento de vida e pela frequência das trocas coletivas. Às vezes, uma lembrança (real ou inventada) me desperta uma urgência de querer passar tudo rapidamente para o papel, para que não se perca; em outros momentos, a simples observação de outra cena, de um processo ou até mesmo do meu estado de espírito (esse exercício a Angélica Freitas sugeriu em uma das oficinas, eu adorei) impulsionam anotações e inícios de versos mais lentos. Ainda quero testar o que a Beatriz [Regina Guimarães Barboza] me disse sobre um processo específico da Sylvia Plath, que consistia em descrever com profusão de detalhes uma pintura, por exemplo. Quero tentar fazer isso com fotografias também, e me vem à cabeça uma que vi da Nora Rónai recentemente, ela sendo a única mulher entre um time de saltadores ornamentais no Rio de Janeiro, um registro de 1946.

Sinto que escrevo de forma mais assídua quando participo dos encontros da Membrana, essa grupa de escritoras da qual faço parte. Muita coisa vem desses espaços, da observação desses espaços, das pessoas que dialogam muito intimamente a partir de seus textos, subjetividades estimulantes. É a troca, mais ou menos frequente, que dita o ritmo e a intensidade da escrita.

Peito aberto até a garganta (editora Urutau, 2020)

O seu livro, Peito aberto até a garganta, como ele surgiu?

Peito aberto até a garganta teve várias etapas de surgimento. Ele veio de uma vontade de registrar a intensidade de narrativas diminuídas pelo passar do tempo; emerge como consequência de uma abertura muito grande, ocorrida em meados de 2017, de entender violências mais ou menos sutis, como as limitações do corpo físico a partir de experiências muito marcadas de cirurgia e temporadas em hospitais (como aconteceu nas minhas percepções de infância), além da tentativa de compreender as limitações do corpo histórico e político, me entendendo mulher e repensando drasticamente papeis sociais; manifesta-se como uma obsessão de procurar qualquer rastro de semelhança que seja com a linhagem de mulheres da família, e com outras escritoras brasileiras, mortas e vivas; aparece como forma de registro de histórias de alguns corpos e nomes, de dar importância às consideradas narrativas desimportantes, que são as minhas, das mulheres da minha família, das pessoas que compartilham comigo a vida.

Qual é o seu verso favorito do livro? Há alguma explicação?

Acho que essa percepção muda bastante, a gente vai se aproximando e se distanciando do texto escrito, uma oscilação interessante que nos permite voltar a ele e ainda nos surpreender. Pensando nos tempos que temos vivido, tenho gostado de um verso que compõe a prosa poética que inicia com o sangue de sêmele, a segunda parte do livro: “quantos fiapos presos na saia do tempo a desfazerem-se”. Essa oscilação, que ocorre nos retornos ao texto a partir da passagem do tempo, também está a ocorrer quando pensamos as relações interpessoais nesse momento de atritos, o que permanece e o que deixa de ser, de fazer sentido, o que vale a pena continuar.

Como você conheceu a editora Urutau?

Numa noite chuvosa de setembro, acho que foi em 2018, Francisco Mallmann lê o que faremos com ele, de haverá festa com o que restar, a pedido da Julia Raiz e da Emanuela Siqueira, mediadoras do curso de introdução à Crítica Literária Feminista, entre o frio das paredes da universidade pública. Foi assim. Em setembro, uma leitura do Chico. Esses encontros.

Alguma observação que queira acrescentar?

Tenho pensado muito na morte, revisitado essa pulsão que conheci de perto ainda na infância, um amargor que faz o corpo doer, esse medo de morrer pelas mãos carniceiras dos outros- tantos que seguem na indecência do mau-caratismo, do negacionismo, da intolerância umbiguista de um pensamento colonial que ainda reverbera com força nas estranhas dessa elite bárbara de facínoras que comandam o país. Eu não escrevo para essa gente, apesar de tudo o que eles têm inscrito em mim.

Mariana Marino

nasceu em Lins, no interior de São Paulo, em 1990. Reside em Curitiba desde 2003, onde é licenciada em Letras pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná, mesma instituição na qual fez seu mestrado. Atualmente, é doutoranda em Estudos Literários na Universidade Federal do Paraná. Pesquisa possibilidades de aproximação entre poesia e a abordagem teórica Ecocrítica e tem interesse em explorar temáticas da natureza na literatura de mulheres latino-americanas e portuguesas. Integra a Membrana, grupa crítica-afetiva de escritoras e escritores, ouvintes, leitoras e leitores. Também faz parte do grupo interuniversitário de estudos Ecocríticos (GECO).

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