“o incêndio autocelebrado/ que chamamos de país” — entrevista com Pádua Fernandes
A 72ª de uma série de entrevistas com as/os poetas da editora Urutau
por Silvia Penas Estévez & nósOnça
O que é poesia para você?
Tanto uma forma de ação quanto de conhecimento.
Quando escreve, pensa em interlocutores? Sua escrita lhe afeta?
Não, de jeito nenhum. Nunca sabemos quem é o interlocutor, seria inútil, ele é sempre uma surpresa, se temos sorte. Tampouco penso em mim mesmo; nem mesmo quero lembrar que já escrevi quando crio algo novo. Penso na forma para dizer; afinal, trata-se de arte.
Quais são os/as poetas da atualidade/vivos/vivas que mais lhe tocam nesse momento?
Dos realmente jovens, o português Alberto Pimenta e o alemão Hans Magnus Enzensberger. Ambos escreveram poesia e ensaio, e a poesia de ambos apresenta uma carga de pensamento forte, o que me interessa muito. Nenhum deles humilha o gênero restringindo-o a simples anotações líricas amorfas ou a palavras de ordem sobre si mesmo, felizmente. Em relação a Pimenta, que passou 17 anos exilado na Alemanha, Enzensberger toca-o também: em 2019, publicou em Portugal uma brilhante tradução, “66 poemas”, pelas Edições do Saguão. Devo lembrar também do argentino Julián Axat, que me inspirou alguns ensaios sobre literatura, ditadura e genocídio, e que está sempre a descobrir na memória formas poéticas novas. No Brasil, além daqueles sobre quem já escrevi, especialmente no ensaio “A perda da terra e a poesia contemporânea brasileira”, gostaria de mencionar Leila Danziger tanto por seus jogos de memória quanto pela contaminação da linguagem com as artes plásticas.
O que você opina sobre as redes sociais como difusoras de arte? Colaboram de certa forma para a existência da poesia?
As redes sociais, em princípio, correspondem a grandes espaços de desleitura; se fossem apenas de não-leitura, o que também são, haveria menos prejuízo. Seguem, porém, o princípio do telefone sem fio, e a notícia contada em uma ponta torna-se rapidamente em outra coisa, e muitos se profissionalizam nesses desvios não artísticos do sentido. Há os que cometem tais ações sem notar, reconheço, não se trata apenas de má-fé, pois interpretação de texto continua uma pepita rara nesses campos. Dependendo da estrutura de cada rede social, ela é mais ou menos propensa para difusão de discursos de ódio e/ou notícias falsas e/ou juízos simplórios e definitivos e/ou puras tolices. Como certas delas tendem a negar o tempo histórico, “presentificando” tudo, e a abolir a memória, temos o fenômeno, visível ao menos no facebook brasileiro, de mortos que periodicamente são enterrados novamente e de outras notícias antigas divulgadas como se fossem atuais. Observa-se que pessoas que seriam inteligentes em outras ocasiões também incorrem nessas práticas, o que mostra que a própria estrutura da rede é problemática. Outro dia li um “fio” no twitter de um jovem doutor que descobria (trata-se de uma fase na vida para descobertas) que não dava para discutir certa autora naquela rede porque os perfis presentes reduziam a filosofia a palavras de ordem e clichês. Trata-se mesmo de uma limitação estrutural desses meios. Dito isso, não vejo problema algum em participar dessas redes (trata-se do espírito do tempo…), basta saber dos limites e se precaver (o ódio pode voltar-se contra você facilmente). É sempre possível colaborar com alguns fios nesse tecido, embora muitas vezes ele não forme roupa alguma e sufoque os corpos que precisavam abrigar-se do frio e das intempéries. A poesia deve existir, claro, também tensionando as redes, ou se tornará tão vazia e contente de si mesma quanto um texto típico de al Face-book (para usar a expressão de Alberto Pimenta). Alguns dos poemas da “Canção de ninar com fuzis” tratam disso, naturalmente. Cito este trecho:”o policial pintou-se de rosa/ fotografou-se/ escreveu sangue/ depois lavou o guache// a foto corre o mundo// tudo nela é falso/ a farda, o soldo, o Estado,// todos subprodutos do botim nacional// a única verdade,/ o sangue alheio que escorre por ele”.
Nos últimos anos tivemos uma série de acontecimentos no Brasil (do fim da era Lula à ascensão da extrema direita) e também uma maior visibilidade aos movimentos de lutas sociais (feminista, LGBTQ+, indígena, quilombola, anti-racistas…) — isso reverbera na sua criação literária?
Claro, imagino que qualquer leitor que abra “Canção de ninar com fuzis” logo notará esses movimentos, já que correspondem aos temas do livro, como as lutas contra a violência policial, do Movimento dos Atingidos por Barragens, dos povos indígenas, das feministas, dos garis dos Rio de Janeiro, do movimento dos Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, das Mães de Maio (um dos poemas tem como título o nome delas, vejo que o público logo percebe a alusão), as revindicações das pessoas transexuais (entre elas, o direito à vida, cotidianamente negado pela sociedade transfóbica brasileira), as lutas contra a discriminação racial (incluindo menção à fala do então candidato à presidência da república, que de forma ultrajante referiu-se a quilombolas em arrobas), dos movimentos sem-terra e sem-teto, dos ambientalistas, dos ativistas pelo patrimônio histórico e cultural. Os discursos dos movimentos neofascistas que pediram o golpe e dão apoio para o atual governo brasileiro são parodiados muitas vezes. Dirce Waltrick do Amarante, na resenha que escreveu, “Poeta critica o espírito bélico que tomou o País em livro”, ressaltou as críticas que faço às tecnologias do poder. Para sugerir esse universo, todo o livro ocorre durante uma execução extrajudicial, apesentada no primeiro poema, cujo fim somente é revelado na ultima página.
O seu poema nasce de súpeto, como algo que golpeia e sai de uma maneira explosiva e rápida ou é um processo mais pausado e longo?
Acontece das duas formas. Sou eu, porém, que golpeio.
O seu livro, Canção de ninar com fuzis, como ele surgiu?
Surgiu gradativamente, como é fácil ver, pois muitos dos poemas foram publicados simultaneamente aos eventos que retratam: a destruição judicial e policial do bairro do Pinheirinho em São José dos Campos, a crise de abastecimento de água (jamais resolvida, na verdade), a repressão política em 2013 pelos governos federal e estaduais, o desaparecimento forçado de Amarildo Dias de Souza, os movimentos #NãoVaiTerCopa em 2014, as comissões da verdade no Brasil, o crime ambiental de destruição do Rio Doce pela Vale, a CPI da violência nos trotes, os Jogos Olímpicos de 2016, o filme da mala de propina durante o governo Temer, a PEC do Fim do Mundo (aprovada pelo Congresso golpista e que agora dificulta o combate à epidemia), a destruição do Museu Nacional, a campanha eleitoral de 2018. Foram sendo escritos, pois, durante as presidências de Dilma Rousseff, o período do usurpador Temer e a eleição do presidente dos fuzis, ainda no posto. Os leitores não conheciam todos eles, porém: há surpresas no livro, pois mantive inéditos alguns, creio que mais de um terço do material. Ademais, os que saíram apenas em Portugal, na revista “Telhados de vidro”, é certo que a maioria dos residentes no Brasil não os poderia ler. Sob esse aspecto, “Canção de ninar com fuzis” difere bastante de “O desvio das gentes”, quase todo composto de poemas inéditos.
Qual é o seu verso favorito do livro? Há alguma explicação?
Acho que não escrevo versos. Nem poemas. Mesmo os desta Canção, eu os concebia pensando em um conjunto sobre o Brasil. Sempre penso em termos de livro de poesia. As peças que estão no livro, todas têm sua justificação no conjunto, mas não são um fim em si, da mesma forma que não vejo sentido imaginar qual capítulo ou frase eu preferiria em meu romance.
Como você conheceu a editora Urutau?
Numa feira literária em São Paulo há anos. A editora ainda tinha poucos títulos. Viva as feiras; pena que, em épocas de pandemia, essas atividades de verdadeiro encontro, o presencial, tenham que ser suspensas temporariamente.
Alguma observação que queira acrescentar?
“os olhos e a boca da máscara indígena/ acordaram quando a fumaça os atravessou/ e viram e cantaram com gemidos// o incêndio autocelebrado/ que chamamos de país”.
Pádua Fernandes
é autor do livro de contos Cidadania da bomba (São Paulo: Patuá, 2015), do ensaio Para que servem os direitos humanos? (Coimbra: Angelus Novus, 2009) e dos livros de poesia O palco e o mundo (Lisboa: &etc, 2002), Cinco lugares da fúria (São Paulo: Hedra, 2008), Cálcio (Lisboa: Averno, 2012; São Paulo: Hedra, 2015; publicado na Argentina em tradução de Anibal Cristobo por De la talita dorada em 2013) e Código negro (Desterro: Cultura e Barbárie, 2013). Organizou a antologia de Alberto Pimenta A encomenda do silêncio (São Paulo: Odradek, 2004). Recebeu o Prêmio Guavira por Cidadania da bomba, como melhor livro de contos de 2015, e o Prêmio Minas, de poesia inédita, por Cálcio em 2011. Foi pesquisador da Comissão Nacional da Verdade, da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva” e da Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo. Realiza pesquisa de pós-doutorado no IEL-Unicamp sobre literatura e justiça de transição.