“O poema carrega sempre as reverberações de seu tempo” — entrevista com Danilo Gusmão

editora Urutau
5 min readMay 22, 2020

--

A 56ª de uma série de entrevistas com as/os poetas da editora Urutau

por Silvia Penas Estévez & nósOnça

Danilo Gusmão (por Marcella Sneider)

O que é poesia para você?

Uma das mais primordiais formas de expressão e troca de sentidos entre os seres humanos, capaz de reinventar as possibilidades da linguagem como instrumento central na cultura, na comunicação humana e nas transformações mais árduas da humanidade.

Quando escreve, pensa em interlocutores? Sua escrita lhe afeta?

Sim, em tantos quanto possível. Procuro fazer poemas que dialoguem ao máximo com diferentes leitores e leitoras, usando o ritmo e a musicalidade como recursos centrais para que o sentido possa transitar melhor entre escrita e leitura. Sim, a escrita me afeta profundamente e ao escrever desejo sempre afetar quem quer que possa ler meus poemas.

Quais são os/as poetas da atualidade/vivos/vivas que mais lhe tocam nesse momento?

Francisco Alvim, Adélia Prado, Luz Ribeiro, Bénédicte Houart, Ricardo Aleixo, Ana Martins Marques, Luiza Romão, Nuno Ramos, Daniel Minchoni, Carlos Machado, Ruy Proença, Eveline Sin e Arnaldo Antunes.

O que você opina sobre as redes sociais como difusoras de arte? Colaboram de certa forma para a existência da poesia?

Sim, colaboram. Inclusive, viabilizando possibilidades inéditas de criação poética, relacionando a palavra com a imagem estática ou em movimento e com sonoridades musicais ou não.

Nos últimos anos tivemos uma série de acontecimentos no Brasil (do fim da era Lula à ascensão da extrema direita) e também uma maior visibilidade aos movimentos de lutas sociais (feminista, LGBTQIA+, indígena, quilombola, anti-racistas…) — isso reverbera na sua criação literária?

Sim, inevitavelmente. Deixar-se atravessar tanto pela retrógrada e violenta ascensão conservadora quanto pelo progressista avanço dos movimentos sociais não é uma escolha poética, soa-me mais como uma consequência natural de escrever em nosso tempo. Diante da pujança política dos últimos anos, mesmo a negação dessas realidades seria ao seu modo um comentário acerca delas ou, ao menos, um posicionamento. Em minha criação, opto por transcriar o máximo da realidade política que tem nos atravessado, posicionando-me declaradamente à esquerda da forma mais contundente que meu lugar de fala e minhas escolhas formais permitem apresentar. O poema carrega sempre as reverberações de seu tempo, assim como a canção, a conversa, o levante, o telejornal, o post de instagram, a pregação, o pixo etc.

O seu poema nasce de súpeto, como algo que golpeia e sai de uma maneira explosiva e rápida ou é um processo mais pausado e longo?

As primeiras ideias para um poema parecem nascer de uma certa instantaneidade e rapidamente os versos iniciais estão escritos, mas geralmente o poema não se encerra nesse ímpeto. Ao observar esse primeiro momento de criação posteriormente, fica evidente o que o despertara: uma música, alguma frase ouvida na calçada, uma imagem, um pensamento, um outro poema, enfim, algo que já estava ali antes do lume da escrita. Sendo assim, o poema para mim é sempre fruto de um processo razoavelmente longo, desde antes de sua primeira faísca até sua maturação que, por sua vez, costuma levar no mínimo o tempo de uma tarde, mas pode tomar alguns anos.

Cavalos soltos (editora Urutau, 2019)

O seu livro, Cavalos soltos, como ele surgiu?

O livro é composto de poemas escritos entre 2013 e 2018, mas seu formato se consolida em meados de 2015, quando decido pelo recurso das sessões temáticas norteadas por epígrafes retiradas do cancioneiro popular brasileiro. “Cavalos soltos” é, em linhas gerais, um livro sobre o diálogo como forma de resistência e é desse mesmo diálogo posto em prática que ele surge: seja em conversas com amigxs, canções ouvidas e cantadas, poemas descobertos ou revisitados e experiências afetivas e/ou conflituosas das mais várias.

Qual é o seu verso favorito do livro? Há alguma explicação?

São poucos os versos do livro que encerram seu sentido sem uma dependência direta de um outro anterior ou subsequente, mas elegi o último verso do poema ‘martelo’:

o martelo é seu chifre de revanche

No poema, a palavra “martelo”, além de aludir à ferramenta, principalmente se refere ao decassílabo usado por cantadores sertanejos, servindo então de metonímia para o fazer poético como uma forma de revide às opressões lançadas contra todo ser desprivilegiado social e economicamente. Como se a poesia pudesse criar uma resposta justa à violência histórica de classe, raça, corpo e gênero no Brasil e conjurasse de imediato as reparações sociais mais necessárias que a práxis não pode ou não quis fazer. Talvez seja esse o desejo principal desse livro.

Como você conheceu a editora Urutau?

Primeiro conheci a editora Medita, que publicou Em segunda pessoa, livro da então poeta e hoje quadrinista Aline Zouvi. Em duas edições da revista euOnça, da mesma Medita, foram publicados textos de Thiago Dias, Leandro Silva de Oliveira, Thiago Sá e novamente Aline Zouvi. Segui acompanhando os trabalhos e vi surgir de alguns dissidentes da Medita (perdoem-me qualquer engano) o trabalho da Urutau, que publicou Janela para gatos, também de Thiago Sá. Todos os nomes citados transitaram junto a mim no coletivo de criação literária A Mandíbula entre 2012 e idos de 2016/17. Assim a editora e o meu trabalho foram intermitentemente se encontrando até culminarmos na publicação de nosso Cavalos soltos.

Alguma observação que queira acrescentar?

Não, acho que já falei bastante. Só agradeço mesmo pela entrevista e pela parceria da Urutau fomentando possibilidades para a poesia de nós vivos. Sigamos!

Danilo Gusmão — Ogó

Danilo Gusmão

é escritor, compositor, músico e educador. integrou o coletivo a mandíbula, realizando ações a partir do diálogo entre a literatura e outras expressões artísticas como a performance, o vídeo e a intervenção urbana. publicou seu primeiro volume de poemas, contíguo (Patuá, 2013), e o infantojuvenil céu-tamanho (MOVPalavras, 2015), ilustrado por Veridiana Scarpelli. fez a direção musical dos espetáculos Cantos de um naufrágio esquecido (2016) e Aroé — CorpoVestígio (2017). atua em diferentes instituições de ensino formal e informal — e para além delas — , fomentando a criação literária como ferramenta de expressividade e resistência. é mais do que qualquer coisa pai de maria.

--

--