“O próprio horizonte é uma longa curva” — entrevista com Bruno Fidalgo de Sousa

editora Urutau
5 min readApr 29, 2020

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A 33ª de uma série de entrevistas com as/os poetas da editora Urutau.

por Silvia Penas Estévez

Bruno Fidalgo de Sousa (Leiria, 1997)

A poesia é uma forma de ver o mundo?

Pelas infinitas valências do poema, pode perfeitamente ver, narrar, dissecar o mundo, as construções sociais, as questões humanas. A poesia não tem um propósito. Se tiver algum, serão vários. E o poeta que vê o mundo é incapaz de o desver, de desassociar o poema da sua perspetiva. A poesia pode, perfeitamente, ser “uma forma de ver o mundo”. Mas importa ressalvar que nunca será apenas isso.

Quando escreves, pensas em alguma leitora/leitor imaginária/o? Se vês afectado por aquilo que escreves?

Raramente. O poema não precisa de ser lido para existir, precisa? O leitor vem depois, escrever para uma futura salva de palmas não é, de todo, a minha vontade, o poema deve, acima de tudo, ser fiel a si próprio.

Achas que há leitores de poesia ou só os poetas se lêem entre si?

(adoro a pergunta) Em geral, o “mercado” não é bom. Não sei números, mas sei que as vendas baixam e descem sem nunca subir verdadeiramente, as grandes editoras preferem sempre poetas consagrados e, lá está, com um público que lhes garanta lucro. Mas, ao mesmo tempo, não me interessa, de todo, o “mercado”, o grande capital que já há muito se apoderou da literatura. Há imensa poesia que não está propriamente à venda, milhares de pequenas e médias editoras que, mesmo confinadas a uma distribuição reduzida (especialmente comparadas às grandes superfícies) arriscam e publicam poesia que é verdadeiramente apreciada — e não somente o nome na capa; há centenas, milhares de poetas por todo o mundo, online; as revistas de poesia parecem estar a voltar a todo o fôlego. Não acredito que somente os poetas sejam leitores de poesia, talvez os novos leitores de poesia ainda não tenham chegado ao contemporâneo, talvez os velhos leitores de poesia ainda não tenham chegado ao digital. Se uma página de Instagram consegue chegar a milhares de seguidores, não seria correto dizer que não há leitores. Podem ser menos — ainda que acredite que estejam em crescimento — e ter a poesia muito menos mediatismo quando comparada a outros géneros, mas existem certamente muitos — e ávidos — leitores.

Que opinas sobre as redes sociais como difusoras de arte, recitais etc.?

Indo ao encontro da resposta anterior, é o progresso, a globalização da poesia. Hoje, posso ler os versos online de um carpinteiro de Winsconsin ao lado de um haiku finlandês; há revistas online de poesia e literatura, como a DILÚVIO, há poesia chinesa traduzida em português na Caliban; movimentos, estilos, autores que crescem nas redes sociais. Podem ser injustas, que o são, mas cumprem o propósito, neste caso, como difusoras de arte, de aproximar leitores, poetas e poemas de todo o mundo. Depende sempre da pessoa que se é online. Idealmente, não seriam necessárias para fazer a arte chegar mais longe. Mas nem o mundo é ideal nem as artes, como tudo, estão estagnadas.

O teu poema nasce de súpeto, como algo que golpeia e sai de uma maneira explosiva e rápida ou é um processo mais pausado e longo?

Cada poema se escreve de maneira diferente. Tantos são os momentos em que um pormenor diferente, uma ideia abstrata, um par de palavras, dão um rompante verso ou uma quadra que já está perfeitamente delineada na mente antes de a passar para a realidade física; como as alturas em que me sento a escrever o que quero, sem saber bem como, aí sim, pausadamente tentando encontrar o que faz dos versos… um poema.

Curva (editora Urutau, 2020)

Este livro, Curva, como surgiu?

Com a idade, seria a resposta curta. Ainda sou jovem, na casa dos 20, pelo que a arte que tento criar ainda não encontrou, acredito, o seu, digamos, caminho. E depois do caminho há uma curva. E outra. O próprio horizonte é uma longa curva. As curvas, não nos deixando capotar fora da estrada, alteram a nossa direção. Quer na poesia como em todos os estágios de existência, quer no romance quer no social cenário do mundo, a linha reta tende a tornar-se aborrecida, não?

Qual é o teu verso favorito do livro? Poderias explicar o porque ele é o teu verso favorito?

Não sou capaz de escolher um poema favorito, ainda menos um verso. Poderia destacar alguns, mas opto então apenas por transcrever estes versos finais de um poema em retaguarda: “mas a arte não nos diz nada./ nós é que temos de lhe dirigir a palavra.”

Como conheceste a editora Urutau?

Conheci alguns autores da editora nas redes sociais, sem propriamente os conhecer, lendo o que escreviam, até chegar aos seus livros publicados aqui, na Urutau, casa que me pareceu desde logo um fantástico teto para a CURVA — mais que confirmado.

Alguma observação que queiras acrescentar?

Um agradecimento à Urutau e a todos os leitores e leitoras — e que a próxima pandemia faça uso da palavra e não do corpo. Até lá, cuidaremos uns dos outros.

Bruno Fidalgo de Sousa

nasce em Leiria, Portugal, à hora de almoço — com fome de ler, pequena lombriga que não demorou a alcançar a ponta dos dedos e a esponja do crânio. Aos dezoito anos, inicia a licenciatura de Jornalismo e Comunicação, em Coimbra, onde constrói os primeiros versos enquanto adulto e deixa no currículo a vice-presidência da televisão-escola da academia. A fome tornar-se-ia sede que aguçava a poesia. Assim que terminou a graduação, publicou o seu primeiro livro de poesia, Os Lobos Dançam de Noite [2018], com 21 anos, e criou o projeto pessoal “poemas do meu sótão” no Instagram. Fundou, no final de 2019, a revista DILÚVIO, com o intuito de aprender a boiar. É videógrafo e cronista, autodidata nas quotidianas atividades do ser. Publica agora, com a Urutau, Curva, reflexão à inquietação da estrada.

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