“Os meus poemas nascem a partir do que consigo fazer com meu corpo fora de casa” — entrevista com Maria Isabel Iorio
A 94ª de uma série de entrevistas com as/os poetas da editora Urutau
por Silvia Penas Estévez & nósOnça
O que é poesia para você?
O que não é governo. Tudo que não poderia ter sido escolhido por unanimidade ou maioria. Poesia é pequeno, pequeno. Digo, poesia é uma lente vermelha grudada nos olhos, a acompanhar todos os movimentos, enxergar neles o que não é pra ser visto. Um suvaco que pede que os braços se levantem para que seja visto. O suvaco está ali o tempo todo, descansando, suando. Poesia é a possibilidade de acompanhar uma formiga no Japão. Mesmo estando no extremo oposto do mapa. Pra mim é sobretudo uma postura. Uma postura arriscada, extremamente perigosa, que nos abre o que nunca estamos prontos pra encostar. Mas é preciso encostar.
Quando escreve, pensa em interlocutores? Sua escrita lhe afeta?
Quando escrevo lembro de tudo que foi feito para que eu pudesse escrever, a começar por ter aprendido a escrever. É preciso lembrar que muita gente no país não foi alfabetizada. Quando escrevo penso em todas as poetas que abriram esse caminho. Quando escrevo sei que foi escrever que me tirou da vontade de morte que uma depressão me trouxe anos atrás. Foi escrevendo que me pus a inventar a vida, de novo. Que pude dividir o que pensava, ganhar conversa. Sei que foi o que me jogou dos dois lados do jogo, como que diante dos dois exércitos contrários, vendo a guerra de perto. A responsabilidade de cada lado. A possibilidade de transitar. Sei que é só o que eu tenho pra fazer nessa vida, então sim, me afeta e me emociona pra caramba. É um método de vida. E só é feita porque há interlocução, diálogo, amizade.
Quais são os/as poetas da atualidade/vivos/vivas que mais lhe tocam nesse momento?
Eu leio principalmente poetas vivas, gosto de estar em diálogo com as pessoas vivas, nesse tempo. Então são muitas, as que me tocam. Vou dizer só duas, pra não correr o risco de acabar dizendo trinta. Grace Passô, com o que faz em tantas linguagens, e Ocean Vuong — nesse momento-momento diria que estou inteira dentro do seu livro de poemas chamado Céu Noturno Crivado de Balas. E posso dizer que vivo em conversa constante com Cecília Floresta, Tom Grito, Caio Riscado, Francisco Mallmann, Janaú (…)
O que você opina sobre as redes sociais como difusoras de arte? Colaboram de certa forma para a existência da poesia?
Colaboram, claro, na medida em que são mais acessíveis a quem escreve e tem acesso a internet. E também forma um público fora da cena de leitores da poesia. Hoje a internet está cheias de poemas, chegando onde nunca imaginávamos anos atrás. Quando lancei meu livro recebi mensagens de pessoas de absolutamente todo o país, pessoas que eu nunca conheceria, me pedindo o envio do livro. A cada endereço distante que eu anotava no envelope do correio eu sentia um arrepio daqueles que temos com coisas que não estávamos esperando. Há muitas poetas excluídas deste mercado — porque é, também, um mercado — que encontram seus leitores por fora, na internet. E a partir daí vão traçando seu caminho perto dos seus leitores.
Nos últimos anos tivemos uma série de acontecimentos no Brasil (do fim da era Lula à ascensão da extrema direita) e também uma maior visibilidade aos movimentos de lutas sociais (feminista, LGBTQ+, indígena, quilombola, anti-racistas…) — isso reverbera na sua criação literária?
Isso reverbera na medida em que devemos muito a esses movimentos. Pensar em lançar um livro que escreve poemas falando do sexo entre duas mulheres, por exemplo, ou sobre a quebra de gênero, a possibilidade de desvio de um corpo, pensar nesse livro há anos atrás é extremamente difícil. Não havia esse espaço. Não só espaço de publicar como espaço na gente, de escrever. Tínhamos muitas palavras desautorizadas — elas ainda eram xingamentos. E o poema deve ser essencialmente um espaço de liberdade. O poema é uma resposta nevral ao fascismo e ao sistema, ele é uma eterna vontade de desarmar esses mecanismos, isto para dizer que todo poema é uma desobediência, uma transgressão, um movimento. E para que seja foi preciso muita luta coletiva, de milhares de pessoas que perseguem a liberdade ainda que ela seja sempre provisória, sempre uma promessa, uma tentativa. É esta tentativa que nos permite escolher as palavras e usá-las, como uma emboscada. Um poema pede ser sempre escrito numa outra língua, interrompendo a colônia. Quero dizer: ele só é possível por causa das lutas citadas, e se avoluma a elas, fazem barulho junto. Porque essas lutas por direitos, infelizmente, são incessantes, não podem parar. Cabe a cada um — a mim, por exemplo, como poeta, branca, sapatão, do sudeste — entender com quais ferramentas podemos contribuir, estudar todos os gritos.
O seu poema nasce de súpeto, como algo que golpeia e sai de uma maneira explosiva e rápida ou é um processo mais pausado e longo?
Os meus poemas nascem a partir do que consigo fazer com meu corpo fora de casa. Tanto em gesto como em observação. Os meus poemas nascem de caminhadas, de esbarrões na cidade, e sempre partem da convivência com uma ideia, ele precisa ser uma ideia gritando meu nome, me dobrando na cadeira, me obrigando a pensá-la com as mãos. O percurso até chegar a ele é lentíssimo, é o trabalho de uma vida inteira, mas quando chegam nas mãos saem correndo, escorregando. Às vezes nem percebo o que estou fazendo. Às vezes sei exatamente o que estou fazendo.
O seu livro, Aos outros só atiro o meu corpo, como ele surgiu?
Esse livro é uma etapa muito importante de elaboração do meu processo erótico no mundo. A minha sexualidade foi um lugar muito duro, difícil, que me pediu um trabalho imenso na vida. Para recebê-la, para elaborá-la, para inventá-la. Não era um dado, me foi negada, e eu a persegui no tempo, como podia. Atravessando os traumas e roubando deles outras palavras, caminhos. Isso é, claro, uma marca e uma questão, coisas que me pediram muito pensamento e experiência. E hoje uma celebração: de um corpo vivo, aberto, atirado. Com vontade de ir pra todos os lugares. Então queria escrever um livro que bota o tesão no meio da sala. Que pede que o leitor sinta um pouco de tesão. Que ele entre no jogo. Jogo com vaidade, pergunta, convite, expulsão. E porque o tesão não fica só na transa, o livro abre pra relação com as coisas, com o tempo, com as máquinas, com o próprio corpo, com os bichos.
Qual é o seu verso favorito do livro? Há alguma explicação?
Essa pergunta é difícil. Não sei se tenho um verso favorito. Acho que posso falar do título, que é um verso. Porque gosto que seja, que seja uma frase, que seja longo, que dê trabalho pras bocas. Esse título surgiu em um governo declaradamente fascista, esse em que ainda estamos, que defende com muita vivacidade a legalização de armas, por exemplo. Desde as eleições venho pensando nas nossas armas, nós, as vivas, as que querem todas vivas, e a resposta que encontrei foi essa: o que temos pra atirar é o nosso corpo, os nossos encontros, as contas dos nossos bares, que provam que estamos dividindo muitas noites, as perguntas se chegaram bem em casa, todos os cuidados que inventamos juntos. o nosso corpo: esse organismo que é vivo e perigoso porque está estudando, está se ajuntando, amando, está tomando pra si as palavras, está sonhando.
Como você conheceu a editora Urutau?
A Urutau me chamou a atenção porque fazia chamadas só para poetas mulheres, para poetas trans, coisas que não víamos ser feitas. Um trabalho político muito importante. Participei de uma das primeiras levas, acredito, com o primeiro livro, Em que pensaria quando estivesse fugindo, publicado em 2016. Eu e mais 6 poetas. Me enviaram a chamada e eu me inscrevi. Então fiquei conhecendo o projeto de diagramação e de design gráfico que são muito especiais, inclusive abertos para imagens, abrigando muito bem artistas como eu e tantas outras, que escrevem por texto e por imagens.
Alguma observação que queira acrescentar?
Talvez uma pergunta. Que eu ainda não tenho. Mas imagino que quem chegou até aqui mereça ouvir: cuidem de seus olhos. Encontrem suas palavras. Escrevam. Vamos disputar a vida. Vamos perseguir essa pergunta.
Maria Isabel Iorio
nasceu no Rio de Janeiro, em 1992. Formada em Letras pela PUC-Rio, é poeta e artista visual. Lançou, em 2016, Em que pensaria quando estivesse fugindo (Editora Urutau), participa com poemas na antologia Tente entender o que tento te dizer (Bazar do Tempo), Alto-mar (7Letras), Explosão Feminista (Companhia das Letras), Que o dedo atravesse a cidade, que o dedo perfure os matadouros (coletivo Palavra Sapata), São Nossas As Notícias Que Daremos (Movimento Respeita!) e CAVAR UM BURACO NÃO VER O BURACO (publicação independente com a pesquisa da peça que escreveu e dirigiu). É coidealizadora/fundadora do Movimento Respeita! — coalizão de poetas, coorganiza o Les/Bi/Trans/a Slam, para pessoas LBT. Atua como provocadora, curadora, dramaturga, performer, diretora, produtora e colaboradora de práticas artísticas e políticas. Pesquisa a água na cidade. Tem 1 grau de miopia.