poesia é nascer/respirar o ar doído, violento/invasivo/pela primeira vez” — entrevista com Cecilia Furquim

editora Urutau
7 min readMay 21, 2020

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A 55ª de uma série de entrevistas com as/os poetas da editora Urutau

por Silvia Penas Estévez & nósOnça

Cecilia Furquim (São Paulo, 1967)

O que é poesia para você?

Definir poesia é uma tarefa gigante, impossível enfrentá-la sem ficar em dívida. Mas vamos lá! Poesia para mim é o encontro pleno entre forma e conteúdo. Algo que só sobrevive nesse encontro feliz, e que tem o poder de causar algo único e múltiplo, na medida em que sua expressão se potencializa em cada leitor/ouvinte, em cada momento de leitura/escuta. Sua fruição é viva, mutante. Embora esse poder seja de toda literatura, o pulso da poesia é intensificado por sua existência pouco explicativa, sugestiva, escorregadia, concentrada, cheia de silêncios, de quebras. Polissêmica, não necessariamente enigmática, musical, inesgotável. Amei uma definição de Anne Carson retrabalhada pela Ana Martins Marques no livro como se fosse a casa: “se a prosa é uma casa/ a poesia é um homem em chamas/ correndo rapidamente através dela”.

Por fim, compartilho, num poema autoral, um sopro a mais na tentativa insuficiente de definir essa arte:

poesia é nascer
respirar o ar doído, violento
invasivo
pela primeira vez
pela primeira vez
sair do útero escuro
do conforto
insustentável
é pressão
de duas feras
a de dentro
e a de fora

cecilia furquim (junho de 2019)

Quando escreve, pensa em interlocutores? Sua escrita lhe afeta?

De maneira geral não penso em interlocutores quando escrevo. Penso na materialização daquele impulso poético, daquele estado ou ideia poética que busco e recebo, que me atravessa na linguagem. Depois que escrevo, me coloco no lugar do receptor e, muitas vezes, me decepciono com o que li. O meu ‘eu leitor’ fala para meu ‘eu escritor’ que está sem ritmo, óbvio, desnecessário. Aí posso mudar ou espero passar o tempo e leio novamente, dando chance de ter uma conversa diferente com aquela produção. Às vezes, acontece o contrário. Escrevo sem me dar conta de muitos outros significados e sonoridades possíveis que saltam do poema. A liberdade da poesia possibilita isso. Com alguma frequência e alegria percebo pontos interessantes em meu texto que não estavam conscientes no momento da primeira escrita e a partir daí me apodero dessa consciência. Um ‘acaso’ se transforma em intenção. Nesse trabalho, às vezes fico na dúvida entre uma solução ou outra. Fico na dúvida da validade do poema. Sou muito insegura. Quando isso acontece, gosto de mostrar para outras pessoas e buscar sua reação. O que pode me tirar ou não desse estado de receio. Porém, o retorno de amigos, professores ou críticos não determina a minha escolha. Ele ajuda, mas não determina.

A minha escrita me afeta muito, por materializar uma angústia, um espanto que vivenciei ou testemunhei com compaixão. Ao transformar isso em linguagem me curo, de certa forma, do embate com a experiência. A linguagem poética tem um poder de transfiguração que compensa algo das dores e canaliza as alegrias. Ela nos dá voz e isso não é pouco.

Quais são os/as poetas da atualidade/vivos/vivas que mais lhe tocam nesse momento?

Muitos poetas vivos me tocam. Não tenho um ou uns que colocaria num superlativo. Me relaciono com a diversidade dos contemporâneos, colecionando pedaços de obras, mais do que sua totalidade. Apesar de muitos terem produções consistentes e contínuas, tenho conversado com elas de forma intermitente e insuficiente. Então, não consigo e nem quero eleger um ou outro nesse sentido. Mas posso mencionar autores de poemas lidos recentemente cujo impacto está bem vivo nesse momento. Poemas de Ana Martins Marques, Ademir Assunção, André Luis Pinto, Anna Clara De Vitto, Camila Assad, Cláudia Abeling, Carlos Machado, Dalila Teles Veras, Diana Junkes, Diogo Cardoso, Francisco Alvim, Heitor Ferraz Mello, Isabela Sancho, Laura Navarro, Lubi Prates, Maria Lúcia Dal Farra, Matheus Guménin Barreto, Natália Agra, Reynaldo Damásio, Ricardo Aleixo, Ruy Proença, Simone Brantes, Tarso de Melo, Tito Leite, Wilson Alves Bezerra. São poemas que deram voz aos meus espantos mais recentes. Encanto e assombro. Na medida em que continuar lendo, outros poetas se somarão a esse tecido feito também por vários que minha desmemória impediu de mencionar aqui.

O que você opina sobre as redes sociais como difusoras de arte? Colaboram de certa forma para a existência da poesia?

Penso que as redes sociais não substituem propriamente os espaços mais trabalhados e concentrados de divulgação da poesia, como revistas literárias, livros, cursos, saraus, eventos (saudades do Vozes e Versos; saudades do Revoada). Mas servem bem para nos direcionar a eles. E, dentro desse espírito mais difuso, inquieto, agoral, também funciona para acolher poemas recém escritos, no calor da hora, ou para ressuscitar poemas antigos num ímpeto, quando algo inesperadamente grita a sua presença.

Nos últimos anos tivemos uma série de acontecimentos no Brasil (do fim da era Lula à ascensão da extrema direita) e também uma maior visibilidade aos movimentos de lutas sociais (feminista, LGBTQIA+, indígena, quilombola, anti-racistas…) — isso reverbera na sua criação literária?

Sim, Mulheres Salgadas é o meu primeiro livro de poemas para adultos. Escrito em 2017/2018, veio como uma necessidade de quebrar um auto apagamento, uma inibição que me paralisava. Ao me dar conta de que essa baixa estima era fruto considerável, não da minha incompetência, mas de uma cultura subliminar de desvalorização da mulher, comecei a sentir, mais do que nunca, a necessidade de testar, desenvolver e dar asas à minha voz. O feminismo, a participação em um coletivo na periferia em 2017(PartidA feminista), me tornaram mais consciente desses processos e da urgência de resistir como mulher. Ainda que tarde, comecei a investir na minha escrita. Agora estou escrevendo outro livro de poemas chamado Brusco, onde a linguagem poética se debate com três lutos vividos muito intensamente a partir do ano de 2019: o luto do pai, o luto do par, o luto do país. Nele, a opressão da mulher continua presente e passou a ser trabalhada de forma mais dura. Violência e morte protagonizam nesse tempo sombrio.

O seu poema nasce de súpeto, como algo que golpeia e sai de uma maneira explosiva e rápida ou é um processo mais pausado e longo?

Muitos tem um parto rápido, alguns tirados a fórceps. E depois passam por uma maturação, já que sigo burilando os poemas.

Mulheres salgadas Cecilia Furquim & Lúcia Hiratsuka (sumiês) (editora Urutau, 2019)

O seu livro, Mulheres salgadas, como ele surgiu?

Ele surgiu quando eu estava em processo de separação daquele que havia sido meu parceiro por dezenove anos e pai de minha filha. Como escreveu Clarice Lispector: “Eu era uma mulher casada. Agora sou uma mulher.” Nessa transição precisei me reinventar em vários contextos, o de mãe, parceira, profissional, cidadã, filha, escritora. E esse encontro na linguagem comigo, e com o que me rodeava, passou por uma conexão forte com outras mulheres que também habitam o livro.

Qual é o seu verso favorito do livro? Há alguma explicação?

Gosto especialmente, não de um, mas de alguns. Pela concisão, sonoridade e significado. Como o verso final do poema yin: desejos dispensam hormônios. Do poema mulheres salgadas: “eu as acolho/ nesse multímodo / molho”. De olhos santos: “nossa casa/ nossa cama/ nossos hematomas”. De executada: “sitiados num hiato/ posto/ o que fazer? / não fazer?”. De cunhã: “quando esse pau dorme/ o cérebro, tenso/ acorda e se faz ordem”. De coceira: “tentou de tudo/ mas nela o mal/ se amalgamou”. Tenho um fraco por paronomásias, como essas últimas citadas: dorme/ordem; mal/amalgamou.

Como você conheceu a editora Urutau?

Eu havia compartilhado uma amostra considerável dos poemas de Mulheres Salgadas no início de 2018 com a poeta Diana Junkes, e ela me perguntou se gostaria que esse material fosse encaminhado para o Tiago Fabris Rendelli, editor da Urutau. Ela tinha recentemente lançado o seu clowns cronópios silêncios com ele, e me recomendou. Eu respondi que sim, embora achasse meu livro ainda inacabado. De qualquer forma, ela nos apresentou e, depois de ler, o Tiago me propôs editá-lo. Fiquei muito feliz e amedrontada. Fazer a poesia nascer, cultivá-la e lançá-la ao mundo é ‘muito perigoso’ e uma dádiva. O dia do lançamento foi pura alegria e sou muito grata à Urutau pelo acolhimento.

Alguma observação que queira acrescentar?

Vida longa à Urutau!
Um viva aos profissionais da saúde!

Fora Bolsonaro!

Cecilia Furquim

nasceu em 1967 em São Paulo, onde vive com sua filha. Num momento mais tardio da vida, investiu na poesia autoral. O interesse pelas canções nonsense de Edward Lear desembocou num livro de arte onde traduziu, criou poemas narrativos para crianças, compôs melodias com seu irmão Beto Furquim e dialogou com as ilustrações feitas pela artista Edith Derdyk. Esse livro/CD, chamado A Coruja, o Gato e os Filhotes (Melhoramentos, 2014), recebeu o certificado de Altamente Recomendável FNLIJ em 2015. A pesquisa literária também lhe é cara e, em sua dissertação de mestrado sobre uma peça escrita em versos (Gota d’água: entre o mito e o anonimato, FFLCH-USP, 2013), uniu o encantamento pela poesia e pelo teatro, que havia marcado sua primeira carreira como atriz quando ainda bem jovem. Sempre ganhou a vida como educadora. Começou ensinando atuação em oficinas e escolas de teatro, e, durante a graduação em Letras, especializou-se no ensino de uma segunda língua, atividade que mantém até hoje. Dá aulas de inglês em cursos extracurriculares para crianças e de Português para um grupo de refugiados. A percepção da urgência de resistir, como mulher, ao fato de ter sempre sofrido e assimilado uma cultura de predominância masculina, que dificulta e esconde conquistas, trouxe uma nova orientação à sua pesquisa literária: a incorporação da crítica feminista e da pesquisa de mulheres escritoras pioneiras como Gilka Machado, Patrícia Galvão e Ruth Guimarães. Nessa mesma época decidiu dar vazão à sua voz de mulher-poeta nesse livro, o primeiro com poemas autorais para adultos.

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