“poesia como uma das formas de observar o mundo” — entrevista com José Viale Moutinho
96ª de uma série de entrevistas com as/os poetas da editora Urutau
por Silvia Penas Estévez & nósOnça
A poesia é uma forma de ver o mundo?
Prefiro dizer que eu uso a poesia como uma das formas de observar o mundo. No caso deste livro, O Amoroso, a observação é feita integrando a vivência, sob os lençóis no mais cómodo dos casos. Porém, como acabo de publicar o que me parece ser a totalidade (além do Amoroso) da minha obra poética aproveitável, em volume de 400 páginas, Os Cimentos da Noite (1975–2018), desde poemas de andar e ver, versos de marcadamente políticos, de crítica de costumes, de alguma sátira aos chamados disparates da índia (Camões), para além de glosas/reflexões de/sobre poemas gregos e latinos, que leio e releio, tal como muita poesia oriental. Digamos que com a poesia pretendo por os pontos nos ii da vida que levo individualmente e em sociedade. Não é por acaso que me revelei tardiamente no género, aos 30 anos. Anteriormente nunca escrevi um verso aproveitável!
O mesmo poderei dizer das minhas narrativas, do conto ao romance, onde o universo tem as propriedades dos capotes que nos abrigam ora do calor, ora do frio!
Achas que há leitores de poesia ou só os poetas se lêem entre si?
É óbvio que há leitores de poesia. O que não me é tão óbvio é que os poetas se leiam entre si de um modo regular. São diversas as sensibilidades e certas questões sociológicas. Por vezes, a crítica destaca poetas de um modo tão excessivo que os anticorpos surgem. Por outro lado, ou no seguimento disto, há poetas que vivem enredados na própria poesia e nas suas leituras predilectas num espectro cronológico que chega aos cancioneiros medievais e a determinados clássicos. Mesmo assim, os livros de poemas raramente são bestsellers por si só, as mais das vezes quando isso acontece é por razões exógenas. Temos vários exemplos.
Que opinas sobre as redes sociais como difusoras de arte, recitais etc.?
As redes sociais, a net, essas coisas todas tem coisas positivas e coisas negativas. Aí se expressam boas ideias e canalhadas do mais baixo nível, essas tantas vezes a encoberto do anonimato. Também por lá surgem informações que não correspondem a verdade e não temos modo de as fazer corrigir. Por exemplo, eu não consigo que seja apagado das minhas notas biográficas, de que não são fontes seguras, que sou descendente de um latinista chamado António José Viale. Devo ter, eu sei, origem italiana, entre outras, mas essa nota é mentira. Não consigo alterá-la e repete-se a toda a hora. Como divulgação de poemas, de ficções, de artigos e ensaios, de opiniões, é como disse: há o bom e o mau.
O teu poema nasce de súpeto, como algo que golpeia e sai de uma maneira explosiva e rápida ou é um processo mais pausado e longo?
O poema acontece-me, geralmente mais em manuscrito do que em escrita mecânica ou electrónica. E nem sempre resiste quando vou a copiá-lo para o computador. Posso alterá-lo frequentemente ou fazer novas versões e nem sempre elas se eliminam entre si.
Este livro, O amoroso, como surgiu?
Este livro foi surgindo ao longo dos anos, esta reedição tornou-o, depois de varias revisões, um livro praticamente novo. A construção de cada poema deve imenso a aquilo que evoca, esses actos secretos, no meu caso partilhado a dois, por vezes com o saber e o sabor da mais completa liberdade, com a autocensura, que por vezes surge, fechada a sete chaves na gaveta da mesa de cabeceira! Esses cortes acontecem saindo naturalmente, tal como já não sou capaz de colocar um ponto final na derradeira palavra dos poemas que vou escrevendo.
Qual é o teu verso favorito do livro (transcreve-lo, por favor)? Poderias explicar o porque ele é o teu verso favorito?
Não tenho versos favoritos, mas recordo sempre uns versos de León Felipe:
Yo no sé muchas cosas, es verdad.
Digo tan sólo lo que he visto.
e de Mendez Ferrín, meu irmão:
De súpeto, cercounos un ar carregado de presencias
mortas
Como conheceste a Editora Urutau?
Na Feira do Livro no Porto, há dois anos. Conversando com o meu amigo livreiro trasmontano António Alves, que me apresentou ao Wladimir Vaz, depois de eu manifestar interesse pelas belas edições que estavam expostas na tenda da Traga-Mundos! E ficamos amigos desde então, e urutauramente,
Alguma observação que queiras acrescentar?
Bem, espero que O amoroso seja, como escreveu Camilo José Cela a seu propósito um livro instrutivo…
José Viale Moutinho
(Funchal, 1945)
Recebeu, entre outros, o Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco/Associaçáo Portuguesa de Escritores (em 2002 e em 2019) e o Prémio Rosalía de Castro/Centro PEN Galego (2016); foi finalista no Prémio Europeu de Narrativa Curta, em Arnsberg (Alemanha) e no Prémio de Narrativa do Pen Clube Português, bem como Menção Honrosa no Prémio Grémio Literário de Lisboa. Recebeu ainda o Prémio Norberto Lopes de Reportagem/Casa da Imprensa de Lisboa, o Pedrón de Honra, da Fundação Pedrõn de Ouro, o Prémio Edmundo de Bettencourt em Poesia e Conto, bem como o Prémio de Jornalismo El Adelanto (Salamanca), a Medalha de Honra da Sociedade Portuguesa de Autores e é sócio honorário da Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia. Ficcionista, poeta, dramaturgo e ensaísta, para além de autor de obras infanto-juvenis, desde cedo se envolveu nos meios culturais associativos, onde ocupou cargos directivos.Tem obras publicadas na antiga União Soviética, no Estado Espanhol (em castelhano, galego, asturiano e catalão), na Itália, na Alemanha, na Áustria, na Bulgária, na Hungria, na Roménia, no Brasil, e em braille . As suas obras mais recentes: na poesia — A Pessoa Indicada, Inóspita Paisagem, Os Cimentos da Noite (Poesia Reunida 1975–2018); no ensaio/antologia — A Alma aos pés de Baco, Literatura Tradicional Portuguesa, O Livrinho dos Contos Tradicionais do Porto, Livro Português das Fábulas, Camilo Castelo Branco: Memórias Fotobiográficas, Literatura Portuguesa de Cordel; e na ficção: as reedições de Destruição de um Jardim Romântico e Romanceiro da Terra Morta , sendo o seu livro mais recente Monstruosidades do Tempo do Infortúnio . Estreou-se em 1968 com a narrativa Natureza Morta Iluminada.