“poesia é qualquer coisa que abra um rombo no coração” — entrevista com Bernardo Caldeira
A 70ª de uma série de entrevistas com as/os poetas da editora Urutau
por Silvia Penas Estévez & nósOnça
O que é poesia para você?
Eu diria que poesia é qualquer coisa que abra um rombo no coração do ser. Isso pode vir de qualquer lugar na vida: da ciência, da política, da filosofia, da arte, do amor. Nesse sentido, a mecânica quântica ou a teoria dos conjuntos são tão poéticas quanto as Elegias de Duíno ou o Sentimento do Mundo. Me parece que a poesia acontece quando, sabe-se lá como, conseguimos escapar das grades do mundo e, no mesmo lance, retornamos a ele tendo trazido um pedaço da escuridão que há lá fora, sob a forma de um sol (mesmo que o lá-fora seja no mais recôndito de si). Por isso é tão difícil defini-la; há algo de místico, de indizível, de fora-do-mundo, sobre a manifestação poética: ela é algo que reconhecemos, porém não temos condições de conhecer.
Quando escreve, pensa em interlocutores? Sua escrita lhe afeta?
Sim, frequentemente estou dialogando com um poeta, um filósofo, um cientista, um político; o que me gerou o costume de dedicar meus textos. Normalmente, dedico os versos àquela faísca que acendeu o poema. Mas não dialogo apenas com pessoas; plantas, pedras, rios e pássaros são também interlocutores tão importantes quanto seres humanos.
Minha escrita me afeta no sentido de que, através da poesia, eu construo um teorema sobre o que sou, e, consequentemente, um teorema sobre Haver. Quer dizer, minha pretensão é que, ao dizer daquilo que é mais profundamente meu, de algum modo eu diga também do que é mais profundamente universal. Às vezes, acho que consigo. E busco repetir essa experiência. Por isso, escrevo.
Quais são os/as poetas da atualidade/vivos/vivas que mais lhe tocam nesse momento?
Não posso dizer que sejam muitos. Tenho uma dificuldade enorme em admirar poetas (strictu sensu) vivos com a mesma intensidade com que admiro os mortos — que, de mortos, não têm nada. Talvez porque eu não seja grande conhecedor da poesia contemporânea, talvez porque criamos nossos próprios cânones de trás pra frente, a posteriori… — o que, aliás, me lembra o título de um livro ainda inexistente de uma poeta viva que admiro muito: Laís Araruna de Aquino. Além dela, posso citar de cabeça agora a britânica Sarah Howe, que tem um poema absolutamente maravilhoso dedicado a Stephen Hawking; Leonardo Bastião, trovador analfabeto que canta a terra seca do sertão pernambucano; e também Carlos de Assumpção, cujo Protesto deveria ser alçado ao lugar de Hino Nacional Brasileiro.
O que você opina sobre as redes sociais como difusoras de arte? Colaboram de certa forma para a existência da poesia?
Acho extremamente importante, se não mesmo vital, apesar de todas as suas aporias. Por um lado, conheci poetas que muito provavelmente não teria conhecido sem a sua ferramenta (como a própria Laís); por outro, leva a uma proliferação de muitos poemas ruins, feitos de maneira descompromissada, ou compromissada apenas com projeção social nesse jogo de espelhos das redes. São efeitos colaterais de uma tecnologia com a qual ainda estamos engatinhando na lida; uma faca de dois gumes, como a teoria da relatividade — que serve para tornar possível tanto o GPS quanto a bomba atômica.
Posso dizer com uma alguma propriedade que as redes colaboram para a existência da poesia, já que eu mesmo só comecei a escrever poemas porque me senti encorajado com a ousadia de outras pessoas em se arriscar nas publicações de internet. Percebi que não era preciso uma chancela do Outro, sob a forma de uma editora ou de um livro, para que um trabalho de qualidade fosse publicável e receptível: eu mesmo me autorizei a isso. E a internet era o campo onde eu poderia, de maneira totalmente independente do sistema editorial, expor o meu trabalho, até então invisível, e atingir um público, mesmo que apenas dentro da minha bolha. Hoje, meus poemas vão um pouco além dela, o que me deixa muito feliz.
Nos últimos anos tivemos uma série de acontecimentos no Brasil (do fim da era Lula à ascensão da extrema direita) e também uma maior visibilidade aos movimentos de lutas sociais (feminista, LGBTQIA+, indígena, quilombola, anti-racistas…) — isso reverbera na sua criação literária?
Sem dúvida. Para mim, é impossível ficar indiferente aos eventos políticos, especialmente os da última década (e a política passou a ser parte fundamental da minha vida justamente com o advento das redes sociais), de modo que eles necessariamente aparecem na minha escrita. Brecht e Maiakóvski são referências canônicas neste aspecto — apesar de ser um erro grave reduzi-los a “poetas políticos” ou de agitprop. No fundo, não importa que tipo de poema se faça — se de amor, de natureza, filosófico, visceral ou cerebral: o ato poético é, sempre, um ato político.
O seu poema nasce de súpeto, como algo que golpeia e sai de uma maneira explosiva e rápida ou é um processo mais pausado e longo?
Geralmente acontece uma faísca na qual eu vejo o corpo do poema como um todo. Daí, já sabendo por onde ir, vou posicionando, sem grandes dificuldades, cada órgão, cada membro, cada verso; uma vez encarnado, orquestro seus sons, seus ritmos e sílabas — um percurso mental cujo objetivo é sempre retornar ao coração.
O seu livro, Estilhaços, como ele surgiu?
Através da indicação da Laís, que me avisou da chamada para publicações da Urutau no ano passado. Eu já tinha um rascunho com poemas coligidos entre 2016 e 2019, mas a partir de então fui revendo o arquivo até chegar a uma forma e um conteúdo satisfatórios para submissão. Felizmente, fui selecionado para publicar e, muito graças a ela, hoje “Estilhaços” existe.
Qual é o seu verso favorito do livro? Há alguma explicação?
Difícil dizer de um único verso, porque sua potência é construída pelos outros órgãos do poema. Mas dois dos quais gosto são “Caem as folhas/ sem saber o que é cair” — o que é curioso, já que compõem a primeira estrofe do poema Despertar, de modo que não existe uma preparação, uma construção para sua potência; ela aparece como um mestre zen que quebra o silêncio com um pontapé.
Como você conheceu a editora Urutau?
Conheci pela Maíra Vasconcelos, que publicou Um quarto que fala. Meu amigo Francisco César me apresentou a ela, e um dia tomamos uma cerveja. Algum tempo depois, fiquei sabendo que ela tinha sido selecionada para publicar um livro por meio de uma editora; essa editora era a Urutau.
Alguma observação que queira acrescentar?
Apenas um agradecimento e uma palavra de incentivo à Urutau e às diversas editoras independentes e críticas como vocês. Que tenham a força necessária para sobreviver ao momento desgraçado que estamos vivendo. Se eles têm o poder de destruir, nós temos a potência de criar.
Bernardo Caldeira
é natural de Belo Horizonte, onde reside. Graduado em Psicologia e pós-graduado em Filosofia, publicou seu primeiro livro de poemas, “Vozes do Silêncio”, em 2016. Atua como psicanalista, professor, baterista e tradutor.