“Poesia é registro. E registrar é se tornar artefato. Tornar-se presente. Tornar-se futuro também.” — entrevista com Gabriel Sanpêra
A 63ª de uma série de entrevistas com as/os poetas da editora Urutau
por Silvia Penas Estévez & nósOnça
O que é poesia para você?
Eu juro que essa pergunta é forte para mim. Já defini poesia como algo que dá sentido a algumas coisas da vida. Como algo que ajuda a continuar acreditando, amando. Acho que hoje, poesia é registro. E registrar é se tornar artefato. Tornar-se presente. Tornar-se futuro também. Por que não?
Quando escreve, pensa em interlocutores? Sua escrita lhe afeta?
Penso. Muita gente entrou e saiu de poesias que estava fazendo, apesar do pouco contato.
A minha escrita me afeta sim. Quando escrevo algo, não consigo reler rapidamente. Existem poesias que não consigo ler nem após terem sido publicadas. Acredito que há discursos que deixei escapulir, que pensei alto e em muitos processos tive medos, e entre eles, o principal: tornar poesia e posicionamento públicos. É preciso muita coragem para expor os arranhões aos interlocutores.
Quais são os/as poetas da atualidade/vivos/vivas que mais lhe tocam nesse momento?
Eu tenho amado ler os escritores que a Urutau tem publicado!
Além disso, nos últimos anos, conheci muitos autores que se tornaram inspiração. Entre eles, João Henrique Balbinot, Jéssica Regina, Albino Grecco e seus versos ferinos. Castiel Vitorino, Paloma Franca Amorim e, com certeza, outros que esqueci de citar.
O que você opina sobre as redes sociais como difusoras de arte? Colaboram de certa forma para a existência da poesia?
Claro. Eu lembro de um colunista ter dito uma vez que a geração das poesias no busão se tornou a geração das poesias na internet. Eu surgi dessa leva. Sempre compartilhando meus escritos e interagindo com pessoas por meio das redes.
Nos últimos anos tivemos uma série de acontecimentos no Brasil (do fim da era Lula à ascensão da extrema direita) e também uma maior visibilidade aos movimentos de lutas sociais (feminista, LGBTQIA+, indígena, quilombola, anti-racistas…) — isso reverbera na sua criação literária?
Com certeza! Como escritor negro e representante LGBT, confrontrar-me com as notícias atuais é sempre um desafio. Conseguir escrever e dar atenção ao processo criativo é uma vitória numa rotina que nos apresenta desafios e oportunidades extremas, boas e ruins.
Vale pensar na polícia e em suas práticas ou nas formas convencionais de amor sobre meus desabafos de paixão verdadeira… Viver antes, escrever como resultado.
O seu poema nasce de súpeto, como algo que golpeia e sai de uma maneira explosiva e rápida ou é um processo mais pausado e longo?
Acho que os poemas nascem como golpes rápidos — são como rompantes e quem leu, leu, ouviu, ouviu. Publico alguns textos de supetão, por ansiedade, e vejo como um discurso que escorregou, como um processo. Gosto de remendar e costurar discursos que superam qualquer padrão textual. Enxergo no processo um nascimento e meus processos acompanham meu desenvolvimento pessoal ou minha própria estagnação.
O seu livro, Fora da cafua, como ele surgiu?
É um livro que foi escrito em um bloco de notas do telefone. Não tinha computador mas me animei em escrever. Os textos que o constituem não possuem ligação cronológica, são uma mistura de acontecimentos mais recentes com outros muito antigos. Mas todos seguem uma única linha de raciocínio e isso me deixa surpreso. Como falei, a escrita acompanha o meu processo.
Juntei todos os escritos em um documento. Poemas, contos e crônicas, adoro a mescla. Repito que o discurso escorrega, mas isso não diminui sua qualidade.
Qual é o seu verso favorito do livro? Há alguma explicação?
“Amo café.” — pois sempre me faz lembrar algo que está presente na maioria das casas, dos paladares e que lembra muito a existência. O café que foi carregado nas sacas pelos meus ancestrais e que mantém muitos acordados, que é exótico e procurado. Sacas com nome e sangue de gente.
Como você conheceu a editora Urutau?
De forma curiosa. Eu fui marcado numa publicação, era uma chamada para livros de poesia. Procurei por mais informações. Alguns amigos já conheciam. A Urutau é apontada pela forma como edita e prepara o livro e estar nesse catálogo é motivo de felicidade.
Alguma observação que queira acrescentar?
Vale ressaltar parte do processo de edição, que foi a revisão textual. Houve muito carinho com a linguagem. Foi uma leitura muito interessante. Fui questionado sobre minhas referências na literatura, arte e música. O envio dessas referências me aproximou da revisora e expressões — como a fala dos pretos velhos — foram mantidas sem limpeza ou correção. Isso me deixou muito contente!
Gabriel Sanpêra
é poeta e nasceu no interior do Rio de Janeiro, na cidade de Barra Mansa, em 6 de setembro de 1997. Desde criança, se viu imerso nas palavras por conta de sua enorme criatividade, e da grande influência de sua bisavó Luiza de Andrade, que o criou.
Escreveu, performou, desenhou e declamou em sua cidade. Aos 16, teve seu primeiro blog, “Versos e Outras Coisas”, em que publicava seus escritos poéticos e textos sobre assuntos referentes à política.
A questão racial veio à tona quando, no ambiente escolar, foi agredido por ser negro.
Num período de busca pessoal, se encontrou com a ancestralidade no terreiro Nossa Senhora da Guia, em Volta Redonda, onde compreendeu a importância de ser negro, periférico e LGBT em espaços como a literatura, ocupados majoritariamente por brancos. E, então, este incômodo o levou a vestir o rótulo de escritor e a divulgar seus escritos na internet.
Gabriel escreve sobre pessoas negras no ambiente cotidiano, com suas vivências e bagagens, corpos negros femininos, masculinos, LGBT e religiosos em diáspora. Para Gabriel, a escrita desempenha papel importante na luta contra opressões sociais na sociedade.
Recentemente, Gabriel teve poesias selecionadas para a Antologia Internacional Best “New” African Poets (African Books Collective, 2017), no Zimbábue.