Se calhar, a poesia é um modo do mundo ver a vida” — entrevista com Judite Canha Fernandes

editora Urutau
5 min readApr 23, 2020

--

A 27ª de uma série de entrevistas com as/os poetas da editora Urutau.

por Silvia Penas Estévez

Judite Canha Fernandes (Funchal, 1971)

A poesia é uma forma de ver o mundo?

É possível que a poesia seja a percepção do mundo a partir da infância, de um momento, ou da memória de todas as vidas anteriores. É também possível, até provável, ser impossível dizer o que a poesia é. De todo o modo, parece-me que existe algo próximo a isso, pois acho que existe uma sensibilidade poética do mundo, e que essa sensibilidade acontece em pessoas que escrevem, ou não, poesia. A poesia acontece para além da palavra, do verso ou da estrofe. O mundo produz poesia todos os dias. Se calhar, a poesia é um modo do mundo ver a vida.

Quando escreves, pensas em alguma leitora/leitor imaginária/o? Se vês afectado por aquilo que escreves?

Às vezes, em alguns poemas, existe um diálogo com pessoas em específico, noutros a ideia de que falo para/com uma multidão. Noutros casos nada disso acontece, escrevi poemas que falam apenas com o vazio.

É recíproca essa relação — porque sou afectada sim, e muito, e porque a poesia surge quando algo me afecta profundamente. Sou tocada quando escrevo e escrevo porque algo me toca.

Achas que há leitores de poesia ou só os poetas se lêem entre si?

Acho que há leitores de poesia para além das e dos poetas. Aliás, se não fosse assim, a poesia teria morrido há muito, somos tão poucos e tão poucas… E ela não morre, acho até que sabemos, intuitiva e profundamente, que a poesia jamais morrerá.

Conheço pessoas que amam poesia, a lêem com regularidade, e que nunca pensaram em escrever um verso (pelo menos que mo tenham dito). Também já pude observar, em leituras poéticas, pessoas que desconheço — com as mais diferentes relações com a poesia, incluso nenhuma -, ficarem presas a essa pausa, a esse tempo absoluto — ou ausência absoluta de tempo — que a poesia produz. Pude ver essa capacidade — mágica — de um poema, acontecer à minha frente muitas vezes, o que me comove especialmente e agradeço ter vivido. Mesmo que essa suspensão não tenha gerado uma leitura regular, naquele momento, aquelas pessoas, foram leitoras de poesia.

Que opinas sobre as redes sociais como difusoras de arte, recitais etc.?

Tenho muitas dúvidas sobre isso. Acho contraditório. Seria necessário todo um tratado sobre economia liberal em pleno capitalismo digital, práticas de consumo, volatilidade, corpo e materialidade do texto e da vida, esforços de promoção — que para mim são necessariamente difíceis -, leituras fragmentadas associadas ao hipertexto, e uma análise muito profunda e crítica a toda essa ideia de difusão — Que difusão? Com que intento? A quem chega? Por quanto tempo? — para conseguir responder. Tendo esse paradoxo claro, não deixo de utilizar as redes como forma de partilhar o meu trabalho, mas tenho permanentes dúvidas sobre se isso faz sentido, ou porque estou a oferecer o meu trabalho — que já em si é tão mal pago. Será que tal se deve a uma espécie de preguiça, a seguir uma “onda” que me ultrapassa porque ainda não encontrei alternativas? Quais os resultados reais que isso traz à continuidade do meu trabalho? Não sei.

Faço neste momento uma excepção — estou a publicar diariamente nas redes excertos de textos meus –, porque, neste período que vivemos, é o contributo que quero dar para comunicar com o confinamento que cada um e cada uma está a viver.

O teu poema nasce de súpeto, como algo que golpeia e sai de uma maneira explosiva e rápida ou é um processo mais pausado e longo?

Depende do poema. Os poemas que escrevo nascem de forma muito díspar. Alguns surgem como raios numa tempestade, outros emergem tão lentamente que me sinto a puxar o fio de Ariadne.

Podemos amar ou podemos (editora Urutau, 2019)

Este livro, Podemos amar ou podemos, como surgiu?

Surgiu porque tive necessidade de falar com o amor. E quando tenho necessidade de falar realmente com alguma coisa, bom… não tenho muita escolha, não é? A poesia, o modo como ela me acontece, é sempre por alguma necessidade. Acontece porque tem de acontecer, não é um processo que eu controle — refiro isto porque a ficção e a poesia operam em mim de modos diferentes. Acontece-me escrever ficção a partir de uma ideia, de um desejo, ou até de uma decisão. Já me aconteceu inclusive escrever um conto a partir de uma proposta que alguém me fez, de uma ideia sua. No caso da poesia, o seu único modo de surgimento — em mim — é a partir de uma necessidade a que não consigo escapar. (Cada vez que tento produzir um poema porque me pedem, ou porque tenho um prazo, por exemplo, o resultado é um desastre.) O que esses dois modos de escrita têm em comum é a existência de uma pergunta que me impele e eu tentar lidar com essa pergunta, mesmo sabendo da possibilidade de nenhuma resposta se produzir, até pelo contrário.

O Podemos amar ou podemos surgiu porque uma infinita pergunta sobre o amor se colocou em mim.

Qual é o teu verso favorito do livro (transcreve-lo, por favor)? Poderias explicar o porque ele é o teu verso favorito?

Se enfiasse os braços pela humanidade dentro, que encontraria?

Não sei bem porquê, talvez porque sintetize algo que sinto como muito antigo e amplo. É um verso cujas imagens me comovem, me dão vontade de abrir, de procurar revelar o que se esconde ali. Ou talvez simplesmente porque o acho bonito.

Como conheceste a Editora Urutau?

É uma história curiosa de conexões. A minha irmã mais nova, a Catarina, conheceu na Galiza a Elena Balboa, companheira do Wlad. Na conversa entre elas surgiu a Urutau e o facto de eu escrever poesia. A minha irmã passou à Elena o link para o meu site. Na sequência disso o Wlad escreveu-me dizendo ter vontade de conhecer o livro “o mais difícil do capitalismo é encontrar o sítio onde pôr as bombas”. A partir daí, a relação existe até hoje.

Judite Canha Fernandes

nasceu no Funchal em 1971 e foi viver para Ponta Delgada, onde cresceu, em 1980. É doutorada em Ciência da Informação, licenciada em Ciências do Meio Aquático e pós-graduada em Biblioteca e Arquivo. Foi representante da Europa no Comité Internacional da Marcha Mundial das Mulheres entre 2010 e 2016. É escritora e dramaturga. Publicou, em Portugal, no Brasil, e em Itália, poesia, ficção (conto) e teatro. O livro de poesia “o mais difícil do capitalismo é encontrar o sítio onde pôr as bombas” (editora Urutau, 2017) foi semifinalista no Prémio Oceanos em 2018. O seu romance de estreia “Um passo para sul” (Gradiva, 2019) foi Prémio Agustina Bessa Luís em 2018 e foi nomeado como melhor livro de ficção narrativa em 2019 pela Sociedade Portuguesa de Autores.

--

--

editora Urutau
editora Urutau

Written by editora Urutau

editora brasileira, portuguesa & galega.

No responses yet