“Sei que quando crio, eu adio a morte” — entrevista com Raquel Gaio
A 82ª de uma série de entrevistas com as/os poetas da editora Urutau
por Silvia Penas Estévez & nósOnça
O que é poesia para você?
É um animal longo que se curva ao mistério. A poesia é lâmina e sanidade, imagem que queima. Sei que quando crio, eu adio a morte.
Quando escreve, pensa em interlocutores? Sua escrita lhe afeta?
Crio junto aos meus interlocutores, vivos e mortos, junto com suas vozes, gestos e imagens que suas palavras trazem. Minha poesia é a celebração desse incêndio, muitas vezes caótico. A poesia é a forma pela qual habito minha orfandade, o sentimento de invisibilidade perante a vida, com ela estou em expedição de um corpo (talvez o meu próprio), e é através dela que investigo o código de desaparição das coisas.
Quais são os/as poetas da atualidade/vivos/vivas que mais lhe tocam nesse momento?
Roberta Tostes Daniel, Carla Carbatti, Mar Becker, Isadora Krieger, Luiza Nilo Nunes, Gabriela Claro Pignataro, Claudia R. Sampaio, Rita Isadora Pessoa.
O que você opina sobre as redes sociais como difusoras de arte? Colaboram de certa forma para a existência da poesia?
Acho que colaboram para torná-la pública, para sua proliferação, não para sua existência. Conheci muitos autores e poéticas através dessas redes, temos várias revistas de literatura e arte surgindo nos últimos anos, acho maravilhoso, o que não substitui a extrema necessidade e a importância do objeto livro, da fala e do corpo poético.
Nos últimos anos tivemos uma série de acontecimentos no Brasil (do fim da era Lula à ascensão da extrema direita) e também uma maior visibilidade aos movimentos de lutas sociais (feminista, LGBTQIA+, indígena, quilombola, anti-racistas…) — isso reverbera na sua criação literária?
Não acredito numa poesia que não deforme estruturas, que não seja esburacada por essas questões. Impossível não reverberar quando há corpos sendo violentados e invisibilizados pelo momento presente e também historicamente. São corpos cansados que retornam sempre como testemunho, e que performam a si mesmo para se fazerem existir numa terra em negação.
O seu poema nasce de súpeto, como algo que golpeia e sai de uma maneira explosiva e rápida ou é um processo mais pausado e longo?
Ele nasce desses dois movimentos. Geralmente anoto em qualquer papel, qualquer mesmo rs, dois, três versos ou mais, que vem em determinado momento e depois continuo a construí-lo no computador, um processo que demora mais. E o que acontece, muitas vezes, é o caos, porque tenho muitas anotações e nem sempre tenho esse tempo para construí-lo no notebook.
O seu livro, Manchar a memória do fogo, como ele surgiu?
Comecei a perceber tanto pela quantidade de poemas como pelas imagens que estavam se criando entre elas, que havia ali um possível livro. O livro foi surgindo e terminou no dia em que enviei pra vocês o original, que era o último dia de envio. Essas imagens foram sendo construídas por palavras que habitam quase todos os poemas, como deus, boca, língua e escuro. “Manchar a memória do fogo” é meu exercício de tatear sobre escuro que encontramos na boca de deus, e em nós.
Qual é o seu verso favorito do livro? Há alguma explicação?
Não havia pensado sobre isso, e voltei ao livro para responder esta pergunta. Talvez um verso do livro que está na orelha, que por sua vez também é um poema: “investigar modos de morar mesmo em exílio”. Acho que estamos todo o tempo investigando formas de habitar este solo, este país, a nós mesmos.
Como você conheceu a editora Urutau?
Conheci a Urutau quando ainda se chamava Medita, em 2014.Lembro que vi no Facebook uma chamada para participar da revista euOnça, na qual publiquei um poema, e desde então acompanho com admiração vocês.
Alguma observação que queira acrescentar?
Como flagrar os olhos do animal que nos atravessa?
Raquel Gaio
nasceu na cidade do Rio de Janeiro. Tem Sol em áries, ascendente em capricórnio e Lua em aquário. Seu Mercúrio é em peixes e tenho o Sol, Marte e Vênus na casa 4.