“somos todos tão felizes e somos todos tão tristes em exata mesma medida” — entrevista com Luana Claro

editora Urutau
7 min readNov 18, 2020

109ª de uma série de entrevistas com as/os poetas da editora Urutau

por Silvia Penas Estévez & nósOnça

Luana Claro (São Paulo, 1994)

O que é poesia para você?

É uma forma de conhecimento. É uma forma de ver, tanto o que é, como o que poderia ser. É um modo de ser. Ana Luísa Amaral, autora portuguesa, afirma que o papel do artista é preservar a memória e também diz que a história nunca acontece da mesma forma. Creio que nem em nossa memória, às vezes, as coisas aconteçam da mesma forma. Ela afirma que esse papel do artista não é incompatível com a beleza. Acho que isso tem uma relação muito estreita com essa ideia de ver o que poderia ser, o que poderia ter sido, olhar de uma forma diferente para os acontecimentos… Mas não sou iludida quanto à beleza da poesia. Serve para ver, seja belo ou não, também.

Quando escreve, pensa em interlocutores? Sua escrita lhe afeta?

Muitas vezes, sinto que escrevo para me desenrolar. Para me entender um pouco melhor. Existe uma busca por uma precisão que também se justifica por isso. Eu acho que quando penso em um interlocutor, penso em alguém que pode se encontrar no poema, da mesma forma como ele acaba sendo o resultado de um busca para mim, de certa forma.

Quais são os/as poetas da atualidade/vivos/vivas que mais lhe tocam nesse momento?

Gosto muito de pensar que nesse momento em que eu escrevo essas respostas, tem muita gente escrevendo e pensando versos. É muito bonito pensar que existe gente viva fazendo isso, ao contrário do que parecia quando eu era pequena. Aprecio muito a simultaneidade dos acontecimentos. Acho que uma poeta viva que sempre estará na minha mente é a Angélica Freitas, pois um amigo, Ayrton Andress, me mostrou os poemas dela e desde então a vida mudou muito. Como aquilo era possível? Durante a graduação, depois, estudei mais a fundo a produção dela, justamente no momento em que estava começando a pensar e a desenvolver o que mais tarde se tornou o Construção. Por todos esses motivos, não poderia deixar de citá-la. Acho que o passado faz parte do processo de nos entendermos e de nos situarmos no mundo, e isso se dá igualmente por meio do que escrevem outras mulheres vivas também, para mim. Existem muitos e muitos nomes e elaborar uma lista é sempre correr o risco de esquecer alguém importante…

O que você opina sobre as redes sociais como difusoras de arte? Colaboram de certa forma para a existência da poesia?

Eu acho que as redes sociais contribuem sim, de certa forma, para difundir a arte. Creio que muitas pessoas chegam aos poetas, por exemplo, por meio da internet, e isso é muito positivo sim, na minha opinião. Pode ser que as coisas sejam “soterradas” rapidamente, dada a velocidade dos acontecimentos virtuais? Sim. Mas acho que isso tem relação com as redes sociais de forma geral, não só quando pensamos em arte… E no momento, creio que o impacto tenha sido mais positivo do que negativo.

Nos últimos anos tivemos uma série de acontecimentos no Brasil (do fim da era Lula à ascensão da extrema direita) e também uma maior visibilidade aos movimentos de lutas sociais (feminista, LGBTQIA+, indígena, quilombola, anti-racistas…) — isso reverbera na sua criação literária?

Ah, com certeza isso me afeta e, consequentemente, afeta minha criação literária. Acho que pensando principalmente no lugar de onde eu falo, o de uma mulher lésbica branca, isso é de suma importância. Não acredito que eu conseguiria me “descolar” da minha vida pessoal dessa forma e, sinceramente? Não é meu objetivo também. Por que eu deveria? Então, pensando no lugar que ocupo socialmente, isso não teria como não me afetar. Inclusive, a primeira parte do meu livro mais recente, Construção, veio de uma sensação muito grande de incomunicabilidade em relação ao outro, de forma geral. Lembro de andar pelas ruas e observar as pessoas e me sentir de uma forma que é até um pouco difícil de definir. E claro, o contexto político tinha muita influência, tudo que víamos, tudo que líamos e ouvíamos… Tudo isso provocava essa sensação. Isso em 2017–2018, num contexto bastante específico que estamos amargando desde então. Além disso, os movimentos sociais, as teorias, tiveram um grande impacto na minha vida pessoal… Isso não poderia deixar de comparecer, de forma alguma, no que eu escrevo. Pensar, por exemplo, o lugar que uma lacuna ocupa na língua, um espaço por preencher… Isso significa muito, politicamente.

O seu poema nasce de súpeto, como algo que golpeia e sai de uma maneira explosiva e rápida ou é um processo mais pausado e longo?

Isso acontece de formas muito variadas atualmente. Acho que o que me acontece subitamente são alguns versos apenas, então depois tenho que pensar um pouco mais nos outros versos. Geralmente, esse verso súbito é o mais importante, que tem o significado central do que eu estou querendo dizer. Antes eu escrevia mais no bloco de notas do celular, por exemplo, por sempre estar na rua, indo para o trabalho, para a faculdade, voltando… Depois de algum tempo, comecei a escrever em caderninhos e percebo que passei a manipular muito mais o texto antes de chegar em uma versão supostamente final, por mais paradoxal que isso pareça, pois escrever no caderno dá muito mais trabalho. O que não significa que eu não vá mexer de novo nos textos, depois de algum tempo. Então vejo que essa mudança do bloco de notas para o caderninho mudou bastante o meu processo com o texto em si, que hoje é mais lento. É também interessante que, no caderno, eu consigo ver todas as versões que o texto teve antes também, algo que não acontecia no bloco de notas, na medida em que eu deletava o texto anterior para substituí-lo pelas novas versões.

Construção (editora Urutau, 2020)

O seu livro, Construção, como ele surgiu?

Antes de publicar o Construção, tinha publicado outro livro pela editora Patuá, chamado Diadorim. Nesse primeiro livro, além dos poemas, existem ilustrações minhas também. Eu desenho há muito mais tempo do que escrevo. Enfim. Pensei que gostaria de escrever um livro que fosse um projeto, já que o primeiro tinha sido uma espécie de coletânea, embora tenha sua coerência interna. E pensei que gostaria de continuar a ilustrar meus livros também. Porém, quando comecei a pensar nisso, não sentia que as duas coisas se comunicavam bem, tanto que, no Construção, não existem ilustrações, apenas colagens. As ideias que eu tinha pareciam muito difíceis de representar. A partir disso, fiquei pensando muito em como dizer o que eu preciso dizer. Se um dos meus meios mais familiares de expressão não parecia funcionar mais tão bem, os outros, posteriores, funcionariam? O Construção é permeado por definições de algumas palavras, como se a forma de dizer estivesse se constituindo ali mesmo, se afinando. Então penso que o livro acabou surgindo de uma desconfiança e a constatação de uma impossibilidade. Fui pensando como isso se manifestava em diferentes partes da vida, politicamente, inclusive. Penso que ter lido o romance Ara, da Ana Luísa Amaral, tenha me influenciado bastante, porque é uma questão muito presente essa de como dizer o que não está dentro da linguagem, nesse caso em específico, por uma questão política. Todas essas ideias são muito determinantes quando eu penso no resultado do meu processo com esse livro.

Qual é o seu verso favorito do livro? Há alguma explicação?

Eu acho que não tenho um verso preferido… Eu gosto de alguns em especial, mas eleger preferidos é um problema, geralmente, para mim. Vou tentar listar alguns versos e explicar. O primeiro deles é “somos todos tão felizes e/somos todos tão tristes/em exata mesma medida” e gosto dele por me lembrar da minha amiga Fernanda Sampaio, que não vejo há muito tempo por causa da pandemia. Escrevi isso depois de sairmos um dia juntas. “o que importa, entretanto, é em qual língua ele sonha”: gosto desse por me lembrar das aulas de literatura hebraica que tive durante a graduação com o professor Luís Sérgio Krausz, para as quais li livros lindíssimos que me influenciaram grandemente. Devo ter escrito isso influenciada pelo livro De amor e trevas, de Amós Oz. Gosto muito do poema curto “é infeliz que não se/ensine em lugar algum/como vencer o próprio corpo/como vencer o peso do próprio corpo”, mas não consigo dizer exatamente por quê.

Como você conheceu a editora Urutau?

Na época que eu estava na graduação, um dia, vi uma caixa de livros para doação. Uma das professoras da universidade tinha acabado de deixá-la ali. Entre os livros que estavam lá tinha um livro da editora Urutau, Lírica abissal, do Alex Dias. Daí trouxe pra casa (e trouxe mais alguns de outras editoras também).

Alguma observação que queira acrescentar?

Recebi o conselho de comprar um caderninho onde eu pudesse ser ridícula, emocionada, séria, sem sentido, o que fosse, um dia. Como me serviu muito bem, é o que eu gostaria de dizer a quem chegou até aqui também.

Luana Claro

nasceu no outono de 1994, em São Paulo. É autora do livro de poemas e ilustrações Diadorim, publicado pela Editora Patuá em 2017. Graduou-se em Letras pela Universidade de São Paulo.

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