“todo mundo precisa de um osso para fazer o seu enterro” — entrevista com Ana Kiffer
A 80ª de uma série de entrevistas com as/os poetas da editora Urutau
por Silvia Penas Estévez & nósOnça
O que é poesia para você?
um modo muito singular de sentir todas as inscrições (dores, fracassos, lutas, combates) do mundo em mim, e de tentar devolver ao mundo um traço.
a poesia é como ser por um momento uma dobra do mundo.
Quando escreve, pensa em interlocutores? Sua escrita lhe afeta?
os interlocutores normalmente aparecem como disparadores da escrita — eles estão ali antes, nutrindo, criando essa massa espessa que depois vai, em algum momento, tomar forma. mas na hora mesmo não, senão acho até que travaria.
aliás esse livro também se teceu, a partir de algum momento, na interlocução com o ensaio fotográfico da artista Ana Emerich, feitos logo após a tragédia do Rio Doce. As suas fotos, eu diria que a sua sensibilidade do olhar conseguiu dizer pra mim muitas vezes o que eu buscava expressar com as palavras. foi um grande encontro.
quando minha escrita me afeta mesmo, e sobretudo quando isso acontece de supetão — sentir tesão, ou chorar subitamente ao ler em voz alta o que escrevi, enfim quando isso acontece para mim é um bom pressagio, dizendo que o texto vai na direção certa. quando se trata de um texto mais longo isso às vezes complica, porque você pode ser absorvido pelos afetos que estão ali, e isso já é mais difícil tanto para a escrita, quanto para a vida; nesse caso, muitas vezes, preciso parar para depois poder voltar a escrever.
mas se minha escrita não me afetar nada eu a engaveto, e digo a mim mesma que aquilo ainda não está bom.
afetar é o termômetro — talvez o mais difícil, porque imprevisível, não domesticável e impossível também de ser aprendido — que está sempre no horizonte da minha escrita (isso não quer dizer que consiga sempre).
Quais são os/as poetas da atualidade/vivos/vivas que mais lhe tocam nesse momento?
são muitas. mas vou falar de poetas brasileiras — a Annita Costa Malufe me toca muito. a Angélica Freitas também. da nova geração a Natasha Félix, muitos poemas da Bruna Mitrano, da Danielle Magalhaes, nossa a lista não findaria. e sobretudo muitas poetas que ainda não li e que quero ter tempo para fazer, logo essa pergunta não encontra uma resposta de todo justa.
O que você opina sobre as redes sociais como difusoras de arte? Colaboram de certa forma para a existência da poesia?
sim, as redes sociais ajudam na divulgação, mas isso não é suficiente. o algoritmo do facebook investe no fechamento de círculos, e sabemos como isso é danoso — essa Gestalt identificatória de pequenos grupos; o instagram também, além de ser uma rede mais imagética e avessa ao texto; o twitter parece promover mais inter-relação de ideias, mas eu confesso que ainda não tive tempo de investir ali — porque de fato cada rede impõe um regime discursivo diferente. e se você não adere ao regime você não consegue “entrar”.
de todo modo imagine como tudo isso é custoso para o escritor, quer dizer: ele sozinho tem que além de escrever, de não ganhar nada ou quase nada com o que escreve (e que certamente lhe custou anos de investimento de vida, de formação, de estudo, de leitura) produzir per si o seu publico leitor, acho que não podemos comprar isso assim de graça não!!! o Estado e todas as instituições — museus, bibliotecas, escolas, universidades, arquivos, centros culturais, livrarias, editoras, revistas especializadas, etc. têm um papel fundamental na formação de um público leitor.
Nos últimos anos tivemos uma série de acontecimentos no Brasil (do fim da era Lula à ascensão da extrema direita) e também uma maior visibilidade aos movimentos de lutas sociais (feminista, LGBTQIA+, indígena, quilombola, antirracistas…) — isso reverbera na sua criação literária?
certamente, porque antes de tudo reverbera na minha vida. eu diria mesmo que a assunção da minha voz pública como escritora e poeta só se fez porque todas as mulheres juntas foram às ruas, porque eu pude começar a mudar o meu modo de dar aula, acreditando mais nas minhas intuições e apostando mais numa crítica sensível, porque introduzi no meu repertorio de leitura e de vida o pensamento de matriz afro-centrada e vozes das mulheres negras — enfim, a autorização ao discurso não é evidente para muitos escritores, de Machado de Assis a Graciliano Ramos. agora assumir isso é outra história — eu não vim de família de artista, nem de escritores, nem de intelectuais — o que no Brasil é signo de uma autorização prévia ao pode-dizer. Minha mãe foi a primeira de sua família que foi para a faculdade, começou a trabalhar aos 11 anos, seu pai era sapateiro. Minha família passou penúria quando eu vim ao mundo, ex-presos políticos pela ditadura civil-militar que não puderam se exilar, nenhum glamour houve na minha infância e adolescência, extremamente repressora e controlada — escrever era o que eu fazia antes mesmo de alfabetizar. e já ali, como hoje vemos ser para a maior parte da população pobre e preta desse país — escrever, criar, se expressar de algum modo era o único modo de não sufocar.
O seu poema nasce de súpeto, como algo que golpeia e sai de uma maneira explosiva e rápida ou é um processo mais pausado e longo?
acontece ser as duas coisas. Mas mesmo quando de súbito ele tem que cozinhar, tem que cozinhar…
O seu livro, Todo mar, como ele surgiu?
esse livro surgiu do meu contato com o pensamento e a prática de matriz afro-centrada, encontrei uma poética viva em algumas práticas de culto aos orixás, também um aprendizado afetivo antirracista na troca e no aprendizado com algumas mulheres negras. mas essa poética dos orixás foi determinante — porque ela faz com que uma outra relação se estabeleça entre o seu corpo e o mundo, a natureza já não só exterior vive na gente e vice-versa, e a gente aprende a respeitar, a ver e a sentir esses processos de hibridação com a natureza ou com elementos da natureza, também a valorização de signos que para mim sempre foram imprescindíveis ao meu campo sensível, mas que a dura formação intelectual haviam diminuído em importância — tais como a intuição, e o saber sentir e interpretar a intuição, uma escuta também mais amplificada para além de sua função cerebral e intelectiva — uma espécie de abertura do corpo e ao mesmo tempo também a necessidade de seus fechamentos, de um cuidado de si diferente e muito mais inteligente e sofisticado do que esse que a brutal cultura branca quer impor a todos há tantos séculos.
todo mar é fruto disso — de um diálogo de sensações e intuições entre corpo, natureza e palavra. às vezes a palavra é essa tecnologia que vem ferir a corpo (e isso é duro de aprender para um escritor), outras é a única forma possível de deixar entrar outro regime — como o da água ou o da pedra — em nós mesmos. todo mar não quer dizer de uma totalidade do mar, quer dizer que no mar todos somos iguais! e a utopia — que também pode ser vista como presságio ou cataclismo, e que aparece na fábula e nota inicial do livro é que o mar pode vir a tomar a terra, ou seja: que a “civilização” humana não é eterna.
Qual é o seu verso favorito do livro? Há alguma explicação?
curiosamente os versos desse livro são mais curtos do que os do meu livro anterior; tem incluso um poema que fala disso e diz num verso “já não sei mais escrever os versos longos que me tomavam/ o fogo ébrio das horas exangues”, gosto muito desse poema “a tourada”. mas no contexto atual, se for para ser um só verso, diante da atrocidade da morte e do desovar incalculável de corpos em mãos desse governo genocida eu ficaria com este verso: “todo mundo precisa de um osso para fazer o seu enterro”, e o tíitulo do poema é mesmo “osso”.
Como você conheceu a editora Urutau?
pois foi justo através das redes sociais e também de escritores que conhecia e que já publicaram com a Urutau, que aliás é uma editora que tem um catálogo denso e que cumpre o papel de descobrir, logo de incentivar novos escritores através de seus Editais, como esse em que fui selecionada.
Alguma observação que queira acrescentar?
Apenas agradecer as questões que você me colocou e dizer que a Galícia vive no meu coração já que a minha filha é metade galega. Logo, vou buscar ler a sua poesia também.
Ana Kiffer
Começou a escrever aos 6. E nunca mais parou. Se graduou em Psicologia, mas não teve jeito e acabou fazendo mestrado e doutorado em Letras. Dizem por aí que a literatura a salvou. Mesmo que a sua predileção sempre tenha sido por autores que não foram salvos. Por nada, nem por ninguém. Um pouco da experiência da loucura sempre habitou o seu mundo e o seu modo de pensar a literatura. Por isso foi para França fazer um doutorado sobre Antonin Artaud. Autor que até hoje lhe persegue. Há muito tempo sonha, projeta e escreve livros que permaneceram enjaulados, cheio de poemas abandonados, de traços por vir de romances. De alguns anos para cá voltou a todos eles. E escreveu outros. Eles começaram a surgir. E já não pode mais parar. Anda dizendo que destampou. É professora associada da PUC-Rio. Colaborou com a revista CAIS. Ali publicou poemas e fotos. Assina mensalmente uma coluna para revista Pessoa, começou com ensaios, passou a enxertos de ensaios-ficcionais. E agora escreve contos breves. Fundou com amigas e colegas uma revista feminista, a Revista DR. Tem poemas publicados nas revistas Escamandro, na Modo de Usar & Co., e em diferentes antologias. Sua pesquisa atual é sobre cadernos. Sempre fuçou os limiares ou as passagens entre o traço poético e o plástico. E as relações entre os corpos e a escrita.
Autora dos livros Tiráspola e Desaparecimentos (Garupa, 2017) e A punhalada (7Letras, 2016, coleção Megamini), ambos de poesia; A perda de Si (org. de Cartas de Antonin Artaud), (Rocco, 2017); Antonin Artaud (EDUERJ, 2016), e das coletâneas Sobre o Corpo (7Letras, 2016), Expansões Contemporâneas — literatura e outras formas (UFMG, 2014), Experiência e Arte Contemporânea (Ed. Circuito, 2013), Anacronismos (7Letras, 2012) entre outros artigos e ensaios.