“Um chocalho que cresce com as chamas invocando a fome devastadora de Iansã” — entrevista com Sérgio Ortiz de Inhaúma

editora Urutau
10 min readNov 26, 2020

111ª de uma série de entrevistas com as/os poetas da editora Urutau

por Silvia Penas Estévez & nósOnça

Sérgio Ortiz de Inhaúma (Inhaúma, Rio de Janeiro, 1982)

O que é poesia para você?

Poesia pra mim é um sopro do desconhecido, um relâmpago arcaico de mandinga rodopiando o coração da medusa. Um chocalho que cresce com as chamas invocando a fome devastadora de Iansã. Esse fora sem nome, séquito ou entendimento que dinamita as categorias do Juízo. Um penetrar nas camadas do mundo que o Ocidente entendeu nada ou bem pouco, ainda que diga que a inventou. Muito embora também tenha tido grandes poetas dentro e fora de suas “tradições”. E falando bem diretamente, de tradição a poesia não tenha nada.

Quando escreve, pensa em interlocutores? Sua escrita lhe afeta?

Quanto a minha criação poética, eu trabalho com essas forças irreais que se intensificam e subsistem por debaixo do que chamamos de Real, que o transfigura e o produz. Neste sentido meus interlocutores são moleques solares, crianças enruadas, Pedras, frutos brasileiros e tropicais, fauna da Terra Brasil, expatriados, conscritos, soldados perdedores, prostitutas, bandidos-de-morro, cangaceiros, fracassados, desdentados, andarilhos, e os sem nada. Minha poesia se faz através deles. E faço uso deles sem demagogia, causa ou ideologia, é uma incitação direta, uma explosão de desejos que se confirmam no corpo da fome, ou melhor, com a mesma intensidade da fome que faz e refaz a emenda das ruas, suas gambiarras, seus encruzilhamentos no nó das esquinas. Eu amo construir esses corpos ensaboados, enviesados e requebrados na tessitura calorenta das ruas. Sou um homem das ruas, mesmo quando não estou nelas, mesmo que um dia volte meu corpo para o descanso e uma rotina caseira. E me vejo sempre e incessantemente atravessado por essas vidas e corpos geneticamente anômalos, esses abortos anacrônicos e infratores. Há uma fissura minha em cosmogonias, entidades, fundações de terras e povos, de que nunca fiquei sarado. Creio, modéstia parte, que não sou um poeta, no sentindo comum do termo, se é que existe esse sentido, um poeta qualquer que se esbarra por aí, mas sou um Fundador Mitológico da Terra Brasyl, um nacionalista transnacional, como me diria um amigo meu. E é isso que é incessante, repetitivo e intenso no que escrevo. Minha poesia é para sempre uma fundação e refundação do Subúrbio do Rio (que na Cosmologia Solar de minha literatura tem dois nomes: Çubúrbio [mais arcaico] e Ssubúrbi0 [mais próximo de uma atualidade, mas ainda assim, por debaixo dela, suspensa numa virtualidade]). Refundação incessante, sanguínea e cósmica, portanto, Brasil, Brasyl, numa sempre produção de povos intramoleculares.

Quais são os/as poetas da atualidade/vivos/vivas que mais lhe
tocam nesse momento?

Sendo bem sincero, eu não leio nada do que se produz na atualidade. Os poetas atuais me interessam muito pouco, ou nada. Não é por indiferença minha, ou talvez seja, sei lá, mas é que me concentro em outras coisas. Do pouco que li, acho a poesia das minas interessantes, elas são bem mais soltas e abertas ao novo, quando não caem na chatice de ficar falando o que todo mundo fala: causas, políticas institucionais, militância etc etc. Os poucos caras que li alguma coisa são uma espécie de pastiche dos Beats, Bukowski, Piva e etc. nada novo sob o Sol. Não tenho paciência. Me parece que todo mundo lê, vê e escuta as mesmas coisas, estudam as mesmas coisas e quando fazem diferente, estão na verdade buscando os mesmos pontos fixos onde vão abalizar as mesmas ideias e questões em busca de uma igualdade. Bem, tô fora, essas coisas não me interessam. Mas também não meto o bedelho onde não sou chamado. O que sei que minha tentativa é sair do cânone, da tradição, sair do que todo mundo tem certeza que é, tudo isso por uma questão muito simples: sou desconfiado. A maioria dos poetas que conheço são oriundos da mesma classe social, diferente da minha, uma maioria branca etc e tal. Tô falando dos mais evidentes e conhecidos. Mas também não fico gritando isso aos quatro cantos, porque nem tempo tenho pra isso. Sou um negro mestiço brasileiro, e é bom que isso seja dito. Escrevo minha literatura, vivo meu modus operandi: que é o caminhar, me difundir, e me misturar pelas ruas de um dos corações do Brasil, o Subúrbio do Rio. Cada um com seu cada qual, acho que é isso né? Rs.

O que você opina sobre as redes sociais como difusoras de arte? Colaboram de certa forma para a existência da poesia?

Não sei ao certo. Sou um homem nascido em 1982 e tive a oportunidade e um certo desprazer de ver as redes socais nascendo e crescendo. Digo isso porque sou um homem das ruas. Vivi o Subúrbio do Rio anos 80/90, e sobrevivi a ele. Fui o moleque típico do Subúrbio: andei descalço por seus paralelepípedos na Vila Acorizal, perdendo tampão do dedão jogando golzinho ou na pelada pelos campinhos de várzea. Joguei bola de gude, soltei pipa, rodei pião, brinquei de pique, desci de papelão no morrinho aqui perto de casa, fiz na mão com os moleques atrevidos, tomei centenas de banhos de chuva, peguei doce de Cosme e Damião, já sai de bate bola pelas ruas de Inhaúma no carnaval e por aí afora. O que quero dizer com isso: fui moldado pelas ruas, cresci nelas e nelas me tornei o homem que sou, para o bem ou para o mal. Rede social é um lugar de autopromoção na maioria esmagadora das vezes, de gente enfraquecida e fragilizada em todos os sentidos. Tem gente que sabe usar isso ao seu favor, mas fodace também. Cada um na sua e no seu cada qual, como eu disse antes. Eu a uso às vezes para postar fragmentos dos meus livros ou para o deboche, em ambas as coisas eu falho prazerosamente. Como todo bom filho dessa terra mágica, violenta e anacrônica, sou filho de mãe solteira. Fui criado por minha avó Materna Fiota e por meu tio e padrinho, Zé Haroldo, vulgo Shaolin, enquanto minha mãe trabalhava fora pra me sustentar. Ambos diziam: “se você apanhar na rua, apanha mais em casa”. Bem, minha avó nasceu em 1920, me dizia que viu um carro pela primeira vez quase aos trinta anos. Mulher de outro mundo e outra ética, mas dura e ríspida, mas também terna e alegre. Mulher extraordinária. A criatura mais poderosa e magnífica que meus sentidos tiveram a feliz oportunidade de conhecer. Minha avó morreu de velhice, bem da velhinha e meu padrinho, assassinado. Eu ia na rua, sou o caçula da Acorizal, os moleques que aqui foram criados comigo, são da faixa de minha idade pra cima. Então eu apanhava na rua e em casa. Mas nunca fugi de uma briga e isso me moldou. Me deu uma coragem quase suicida, o que me dá muita intensidade, mas também pode ser minha ruína. Mas o porquê de tudo isso? Respondo: sou um homem das ruas e não de rede social, e se uso rede social, é porque a vejo como uma extensão das ruas, embora não seja. Sou sincero em ambas e meu papo é sempre reto, porque comigo não rola papo torto.

Nos últimos anos tivemos uma série de acontecimentos no Brasil
(do fim da era Lula à ascensão da extrema direita) e também uma
maior visibilidade aos movimentos de lutas sociais (feminista,
LGBTQIA+, indígena, quilombola, anti-racistas…) — isso
reverbera na sua criação literária?

Ainda observamos e analisamos a política, institucionalmente dizendo, com as mesmíssimas velhas categorias que ela nos deu. Se fala em social democracia, em socialismo real (hoje, não sei se há ainda uma nação sob o domínio dessa categoria), avanço da extrema direita, rebeliões minoritárias (pautas), etc etc. Veja bem, não vou me alongar, e nem dizer que tudo pertence ao mesmo, mas creio, modestamente, que precisamos lidar com essa velha forma política, com as novas forças que se apresentam diante de nós, numa atualidade permeada de virtualidades micropolíticas, de novos corpos que atravessam o corpo e campo social, novos modos de vida que escapam a essas categorias tão batidas e que já não deveriam em hipótese alguma nos dizer quaisquer coisas. Se fala em governo de esquerda do Lula (logo devemos pensar que era melhor que agora), houve “avanços”? Assistenciais, políticas de cota e reparação sócio histórica, crédito para os mais pobres, moradia a custo básico etc etc. Mas e todo fascismo dentro dessa dita ajuda? Nem Lula e nem Dilma impediram a coerção e a opressão das favelas e guetos de todos os tipos, os mesmos que eles garantiram dia a dia ajudarem. Os caverões não deixaram de massacrar meninos e meninas pretas e mestiças, pobres, os miseráveis, os sem nada nos mandatos deles. Os canhões contra Canudos e a Cabanagem continuam ativos. Bolsonaro é uma caricatura de muito mal gosto que nem deveria sair nas tirinhas dominicais. Pra mim ele é só um efeito de algo ainda pior por vir. O que quero dizer com tudo isso, é que o estado quanto tal, essa velha e mesma política institucional como tal, estão impregnados de miasmas, encarceramentos morais, deterioração física, mortificação corporal e vital, embotamento dos sentidos etc etc. E isso não apenas pelo estado, mas pior e ainda mais, pelas relações pessoais e interpessoais. As pessoas continuam, mediocremente, sendo a pobre criatura policialesca, amante do pequeno poderzinho, que julga e condena o outro. Mas creio que no meio de tudo isso, existe arte, vidas produzindo novos modos de existência, uma alegria, mesmo que ínfima e rodeada de assombros medonhos, então, portanto, a ligação que minha literatura tem com isso, é sempre desviar desse estado de coisas, produzir uma alegria que exalte toda vitalidade, e um meio onde se possa jorrar o maravilhoso.

O seu poema nasce de súpeto, como algo que golpeia e sai de uma
maneira explosiva e rápida ou é um processo mais pausado e longo?

Creio que seja uma junção dessas duas coisas e mais outras que não consigo determinar. Quando escrevo um livro, eu escrevo o primeiro livro a ser escrito. É como se eu fundasse a literatura e toda uma miríade de impossíveis estivesse a meu dispor. É uma aventura. E só fui sentir isso quando comecei e terminei de escrever a pedra angular de todos meus livros: Dioilson. Com Dioilson isso me atravessou, me contaminou e nunca mais parou. Dioilson é meu terceiro livro publicado, que publiquei de maneira independente e na rataria mesmo, mão na massa, soco na costela e na têmpora. Mas foi com Dioilson, que como disse antes, fundei toda uma escrita cósmica, solar, çuburbana e impossível. Portanto, meu primeiro livro. Sou professor de filosofia do estado do Rio de Janeiro, e enquanto o escrevia (na greve dos professores de 2016 que durou quatro meses) lembro bem que vivia numa vida sóbria, numa insônia deliciosa que me fez dormir quase nada por duas semanas e viver só de ficar virando as noites escrevendo ele e indo pela manhã comer pão com ovo na padaria. Foi maravilhoso.

Valdeniagô (editora Urutau, 2020)

O seu livro, Valdeniagô, como ele surgiu?

Como eu disse mais acima, quando o escrevi era como se eu fundasse a literatura, o primeiro livro a ser escrito. Antes que eu me esqueça, diferente dos projetos ocidentais, minha carga cosmogônica é do meio pelo meio e para o meio, é um atravessamento, sem começo ou fim, pois pouco me interessa qualquer origem ou terra natal, e tampouco alguma finalidade. Todo povo e toda terra são inventados na necessidade mais hedionda, na alegria mais livre e sanguínea. E eles nunca preexistem, lá no que chamamos de início, mas sempre num meio qualquer. É assim que penso, e assim que me nasceu o Valdêniagô. Obviamente que cada livro que escrevi tem sua singularidade, seus caminhos, suas forças, seus atravessamentos. E Valdêniagô não seria diferente. Eu acho que o Valdêniagô inaugura um novo tipo de poesia, uma poesia do desastre. O livro todo é cheio de pontos sísmicos que abalam qualquer estrutura, e ele todo é um ritual de invocação. Como as entidades que incorporam os corpos no terreiro de macumba e os faz gargalhar, tremer e escumar. Além disso, há toda uma emanação de mulheres que aparecem nele, uma constelação de gentes, coisas, bichos, bairros e ruas, principalmente de mulheres banidas e rachadas. Um povoamento de fêmeas incapazes, mas cheias de sede de vida, uma fome feroz dia a dia alimentada. Mas se Valdêniagô é uma Rainha Incendiada, é porque nela se encontra todo um fogo primordial, um fogo uterino da terra e das constelações. Valdêniagô é o Ssubúrbi0 encarnado. E este Ssubúrbi0, que existe e subsiste por debaixo das camadas do reconhecido Subúrbio do Rio, é uma mulher povoada de outras tantas, sedenta, incendiada, banida e irreal. Pois toda ela fora criada e erguida da lama negra dos mangues e do vermelho da menstruação. Ao mesmo tempo que o Ssubúrbi0 fora sendo construído, fora sendo devastado, e são essas lembranças imemoriais que preenchem o corpo constelar de Valdêniagô. Mas veja bem, é bom que isso fique claro, em nenhum momento estou querendo descobrir a alma feminina, romantizar ou desvelar qualquer coisa. Nem escrevi um livro direcionado principalmente para as mulheres. Valdêniagô não irá ajudá-las em nenhuma militância, causa ou reconhecimento. Respeito suas lutas, espero que vençam todas ou ao menos a maioria, ajudo no que puder, mas não vou além disso. Menos ainda o Valdêniagô. E pra deixar isso mais claro e cirúrgico, para não haver nenhuma confusão, Valdêniagô, assim como os demais que escrevi e escrevo, não é direcionado pra nenhum público específico. Ele está aberto para qualquer um, desde que necessite dele.

Qual é o seu verso favorito do livro? Há alguma explicação?

Não tenho nenhum verso especifico, não que eu lembre. Pra mim o Valdêniagô é todo ele um único verso, uma única página que se desdobrou em várias, por não caber em si mesma. Como a Vida.

Como você conheceu a editora Urutau?

Pela internet. Face, pois eu não tinha Instagram. Só fiz um por conta da live de pré-venda do livro rs.

Alguma observação que queira acrescentar?

Sim, que meu Mengão ao menos pelos próximos cinco anos ganhe todos os títulos, ou ao menos a maioria rs.

Sérgio Ortiz de Inhaúma

é nascido e criado na Vilarrua Acorizal, em Inhaúma, Império Barroco-Macumbeiro, Subúrbio do Rio de Janeiro. Torce pelo Mengão, Mangueira e Império Serrano. É autor de Zona da Mata Eletrônica (Editora RBX, 2011), A Guerra de Plástico (Editora Oito e Meio, 2015), Dioilson (Editora CLAE, 2017), Jaína-máquina Divino (Editora CLAE, 2019) e Yjá,Ygê (Independente, 2020).

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