“uma folga das coisas que são ora lindas ora destruídas” — entrevista com Christine Gryschek

editora Urutau
4 min readJun 21, 2020

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A 85ª de uma série de entrevistas com as/os poetas da editora Urutau

por Silvia Penas Estévez & nósOnça

Christine Gryschek (São Paulo, 1989)

O que é poesia para você?

Lembro dos poemas escritos na infância. Eu aprendi a rezar muito cedo e rezava bastante as orações católicas, e também tentava conversar com deus sobre o que me angustiava no mundo e o que me trazia alegria. Ali, embora eu não soubesse como, eu estava tentando comunicar para o externo as minhas sensações e o que eu estava reparando tanto dentro quanto fora de mim. Ali, eu tentava elaborar, relatar, as minhas narrativas íntimas; como se fosse um ponto de acesso para conseguir me comunicar, me expressar. As poesias vinham justamente quando eu não conseguia traduzir as minhas impressões e os meus sentimentos.

Eu cresci, li, teorizei, mas continuo insistindo nas impressões colhidas enquanto criança, eu as acolho. Entendo poesia como reza, como comunicação emocional, como uma sensibilidade modelada em determinado padrão estético.

Quando escreve, pensa em interlocutores? Sua escrita lhe afeta?

Quando escrevo estou conversando com alguém. Todos os meus poemas são marcados por diálogos, por cenas que rememoro ou construo. Cenas que podem estar povoadas ou que podem trazer um diálogo mais íntimo. Sempre é sobre estar junto, com alguém ou com lembranças.

A minha escrita me afeta porque escrevo sobre as minhas passagens, lembranças, os meus sonhos, medos, as minhas inseguranças e também os meus pretensos poderes. Sou afetada pelas palavras que me sobrevêm e pelas percepções que começo a reparar somente depois de tê-las transcrito.

Quais são os/as poetas da atualidade/vivos/vivas que mais lhe tocam nesse momento?

Gosto muito das brasileiras: Adelaide Ivánova, Ana Martins Marques, Annita Costa Malufe, Cristiane Sobral, Carla Diacov, Eliane Marques, Júlia de Carvalho Hansen, Tatiana Nascimento, Tatiana Pequeno.

O que você opina sobre as redes sociais como difusoras de arte? Colaboram de certa forma para a existência da poesia?

Conheci o trabalho de todas as escritoras que citei e em que me inspiro pelas redes sociais. Conheço a cada dia o trabalho de uma nova escritora, artista, quadrinista, teórica etc que alguma amiga ou conhecida compartilha. Mais do que nunca estou entendendo a comunicação das redes como indispensável para a troca e o armazenamento de referências artísticas. São amplas galerias, bancas, bibliotecas etc.

Nos últimos anos tivemos uma série de acontecimentos no Brasil (do fim da era Lula à ascensão da extrema direita) e também uma maior visibilidade aos movimentos de lutas sociais (feminista, LGBTQIA+, indígena, quilombola, anti-racistas…) — isso reverbera na sua criação literária?

Minha criação, minha clínica, minha crítica e política funcionam mutuamente. São indissociáveis. Aqui exemplifico com os meus projetos atuais: a minha pesquisa em narrativas textuais e visuais feministas produz material artístico com o “sumo” resgatado nos livros, nos diários, nas pinturas. Funciona ciclicamente: a pesquisa-crítica alimenta minha criação, que alimenta a minha pesquisa-crítica; uma sequencia a outra.

O seu poema nasce de súpeto, como algo que golpeia e sai de uma maneira explosiva e rápida ou é um processo mais pausado e longo?

Acontece dos dois modos. Tenho versos que ficaram anos na minha cabeça procurando algum encaixe, e tenho poemas que foram escritos em poucos minutos. Mesmo assim, eu procuro defender e realizar um poético mais preciosista, com um processamento mais lento, configurando uma maturação dos escritos. Defendo que o tempo e a volta aos versos, com muita revisão e ajuste, é um recurso precioso, enriquece o texto, depura.

Recomece, agora sem cigarro (editora Urutau, 2019)

O seu livro, Recomece, agora sem cigarro, como ele surgiu?

Eu trabalhei alguns anos em uma oficina de criatividade, em um hospital psiquiátrico. Uma questão que incomodava a coordenadora era o vício do fumo bastante dissipado ali. Ela era bastante insistente em sua motivação e campanha antifumo. Um dia ela pediu que eu pendurasse no mural da oficina e sugerisse a leitura de uma matéria da Folha de São Paulo, que era sobre métodos e medicinas alternativas que ajudaram algumas pessoas a largar o cigarro. O título da matéria era “recomece, agora sem cigarro”. Algum tempo depois escrevi um poema que fala sobre saúde mental. E fui escrevendo outros poemas. Notei meses depois que a temática clínica, psicanalítica, esquizoanalítica era central nos meus versos. Notei que versava sobre processos de lutos, fissuras, medos, notei que empregava as vozes que ouvia lá dentro do hospital, as vozes das usuárias e dos usuários. Notei que também escrevia as minhas narrativas e meus lutos. Tinha um conjunto então de uns dezoito, vinte poemas. Daí passei a escrever sabendo do escopo, visando finalizar o processo de escrita específico que havia encontrado ali, nas cartografias feitas no hospital psiquiátrico.

Qual é o seu verso favorito do livro? Há alguma explicação?

“uma folga das coisas que são ora lindas ora destruídas”

Gosto muito do poema todo desse verso; é o meu preferido do livro. É o meu favorito porque para mim é a definição de uma pessoa ativa, criativa, contestadora, de alguém que está em algum tipo de busca.

Como você conheceu a editora Urutau?

Conheci a editora através de poetas que li. Entendi que a editora tinha uma ótima curadoria e passei a acompanhar de perto o trabalho.

Christine Gryschek

nasceu em São Paulo, SP, em 1989. é artista visual, escritora, poeta e psicóloga. Recomece, agora sem cigarro é o seu primeiro livro.

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